Carlos Carrozzino foi um grande escalador do Cerj na década de 60, mas parou de praticar o esporte em 1973. Foram 30 anos fora da atividade até que a vida o trouxe novamente para o clube. Aos 62 anos, Carrô voltou à forma e tornou-se um companheiro e um exemplo para todos do Cerj.

Como foi que você parou de escalar e como foi emocionalmente ficar sem a atividade?
Carrô: Naquela época o montanhismo até podia ser um esporte para pessoas de mais idade, mas a média com que os escaladores paravam na Europa era de 40 anos. Isso para nós era algo muito forte, porque parávamos aqui numa faixa de 30 – parávamos de escalar forte, podíamos fazer uma ou outra coisinha, participar de caminhada… Eu tinha como exemplo o Nelson Bravin, uma das pessoas que me trouxe para o clube, que parou em torno de 28, 29 anos. Quando casou, ele parou. O fato de casar e parar parece ter uma relação muito forte.
Eu comecei a escalar tarde, com 21 anos; as pessoas começavam com 17, 18. Hoje em dia tem quem comece com 50 etc., interessante, né? Eu era um dos mais velhos do meu grupo. E casei com uma montanhista (Layla), então mais do que nunca eu deveria continuar… Mas eu estava iniciando uma nova carreira: de informática; comecei a trabalhar muitas horas, muitas vezes ia até meia-noite. Isso tudo foi mudando a característica do meu dia-a-dia. Eu me casei em 1970 e até 1973 eu ainda me arrastava neste elo até que entrei para a faculdade. Aí ferrou, porque eu saía do Grajaú, onde morava, ia para Guadalupe trabalhar, sem carro, depois ia para Botafogo, todos os dias. Chegava meia noite em casa. Eu tinha que ir à luta; era eu e eu e mais ninguém. Onde é que eu aprendi isso? No alpinismo, pô, que eu tinha que batalhar. Mas isso matou. Aí, em 1974, meu primeiro filho; em 1976, o segundo. Aí enterrou.

E como isso ficava na sua cabeça?
Carrô: Estava bem porque eu não tinha tempo para mais nada. Eu trabalha que nem um burro, estudava que nem um cavalo, tinha filhos que me consumiam. Eu precisava também ser consumido por eles; coisa mais gostosa do mundo é você ser consumido pelos seus filhos.

E não pensava em levá-lo para o montanhismo?
Carrô: Levei algumas vezes, mas eles não se adaptaram (há dois anos o filho mais velho, Gustavo, engrenou; e participou da fundação do único Centro Excursionista em Belo Horizonte, do qual é presidente; já o Paulo virou surfista).

Você não ficava triste, pesaroso?
Carrô: Não, a vida mudou mesmo. Eu me sentia um pouco isolado porque eu não procurava ninguém; foi quando, num aniversário de seis anos atrás, o Paulo e o Gustavo (filhos) me deram um boudrier, um oito e um mosquetão-mãe. Porque aí eles já estavam independentes.

Se eles deram este presente é porque talvez percebessem alguma coisa em você…
Carrô: Eu perguntei: que isso? porque pouco antes tínhamos feito um São Bento com os dois, Pellegrini e Claudio (Vieira de Castro) e eu quase morri subindo o São Bento. Eu estava com uma inflamação séria na vesícula e ainda não sabia. Aí matou mesmo o negócio, pensei: não vou fazer mais. Aí eles apareceram com isso e falei: jogaram dinheiro fora. Mas eles disseram que não, que eu ia voltar a escalar. Depois eu perguntei ao Paulo e ele disse: ‘ah, pai, nós estávamos achando que você estava muito triste. Nós víamos os seus domingos tristes, vendo televisão o dia todo’. Eu não senti falta porque tinha muitas outras coisas para fazer até que comecei a não ter mais meus filhos.
Há uns quatro anos, o Paulo disse que, antes que eu morresse, queria fazer um negócio inesquecível comigo: o caminho Inca. Comecei a me preparar fazendo caminhadas sozinho de outubro de 2001 a julho de 2002. E fizemos o Caminho Inca, que para mim foi um esforço tão grande devido a altitude, que falei: bom, agora eu não paro mais, não vou deixar voltar de novo uma deficiência. Continuei a caminhar, agora na companhia da Layla, alguns percursos mais longos, como Pedro do Sino. Não procurei o clube porque achava que eu não tinha mais condições técnicas de escalar, porque a escalada dá essa sensação do receio, do medo que eu não queria ter mais, achava que não tinha nada a ver comigo. Em 2003 dei de cara com o Reynaldo (Pires) na descida do Sino (voltando de uma excursão do clube ao Garrafão); foi uma alegria do caramba.

Pouco antes deste encontro já tinha havido a homenagem à Velha Guarda na Abertura de Temporada de 2003, e você não compareceu…
Carrô: Eu, como sou meio Juliano, pensei: tenho meus objetivos. Não vou ficar olhando um monte de gente passeando enquanto tenho uma caminhada marcada. Me arrependo porque soube de pessoas que estiveram lá que nunca mais apareceram e que eu gostaria de ter batido um papo. Eu não sabia que ia ser um negócio tão bacana. Eu não fui e o Bravin me ligou; comentou que haveria uma reunião no clube para definir o churrasco na casa da Odília, que era para eu aparecer. Quem foi de cara me receber foi a Iara. Fez aquela festa: ‘É o Carrozzino!’
Eu adorei ver o clube arrumado, porque isso aqui foi fruto de um trabalho nosso que você não tem ideia. Todos os clubes que não tiveram sede morreram. Eu tive uma recepção que não esperava. O JP falou logo para eu voltar para escalada e para quem escala o desafio passa a ser importante na sua vida. Pensei: ih, caramba, é um desafio. Eu estava um pouco preparado e pensei: vou encarar essa. Não custa nada, já tenho baudrier; só falta comprar a sapatilha. E eu estava pensando que ele ia marcar um Colorido, mas marcou Emílio Comicci (3º IV sup, via clássica no Dois Irmãos de Jacarepaguá). Fomos Ester e Wal; JP e eu. Quando escutei o ‘pode vir!’, me veio à cabeça: o que estou fazendo aqui? Veio toda aquela sensação de medo, de tudo. Fui indo, mas o estresse estava forte. Cheguei lá em cima super cansado, mas estava mais feliz que pinto no lixo. Hoje em dia não admito não ter um musculozinho pequeno doendo no domingo à tarde. Quando sinto um músculo em casa, está ótimo, eu estou bem. Agora só falta tirar os grilos de guiar; porque não estou psicologicamente preparado para isso.

O que a volta à escalada está representando para sua vida?
Carrô: São duas coisas importantes. Primeiro, o grupo de pessoas que pertencem à minha vida aumentou muito. É uma satisfação muito legal; a gente está vivo, né, a gente representa a vida dentro de uma comunidade e a minha comunidade aumentou bastante. Tem pessoas que eu tenho prazer, tem pessoas que eu gosto, tem pessoas que eu adoro, tem pessoas que eu amo dentro deste clube, sem falar no Claudinho, Pellegrini, Reynaldo… eu daria a vida por eles. Quer dizer, voltou tudo aquilo que era antes, e agora mais essa satisfação de você sentir que todas aquelas doenças que eu tive – pressão alta, colesterol, dor de cabeça – foram se extinguindo. Hoje em dia estou me sentindo fisicamente melhor, apesar de tomar alguns cuidados porque minha família é cardíaca, por isso eu me cuido um pouco, mas eu não sei como vou me cuidar porque toda vez que tem um desafio eu encaro mesmo. Eu não quero morrer numa escalada para não incomodar ninguém (risos). Fora isso, eu me sinto muito melhor, acordo todos os dias bem-disposto, durmo tarde, acordo cedo, estou feliz com a minha vida. Não vejo mais hoje como eu consegui viver sem isso. Eu não entendi. Quer dizer, entendi porque eu precisava, mas não precisaria ser tão longa a parada, podia ter voltado para o clube com 45 anos e não com 60, como foi.

Qual foi o impacto de encarar a Emílio Comicci com outra técnica e equipamento.
Carrô: O Comicci era uma escalada que eu gostava muito de fazer. Eu a fazia umas quatro, cinco vezes por ano. Naquela época eu escalava de alpargata. Depois, em 1968, comprei uma bota semirrígida; bota mesmo, suíça, de couro de antílope virado, com meia placa de aço. Era inteiriça. Existiam dois tipos de bota; uma inteiriça, outra pela metade. As primeiras você tinha que vestir na base porque não conseguia andar com elas. A alpargata tinha uma aderência interessante. Só não pegava muito quando a pedra estava muito quente. Só que você ainda tinha que fazer o equilíbrio dos músculos do pé para que ele ficasse sem mexer dentro do sapato. Escalava-se mais ou menos na posição dez para as duas e às vezes chapado. Essa é uma grande diferença. Quando coloquei o pé na pedra (no Comicci), senti que não precisava colocar o pé da mesma forma. Quando terminei a segunda escalada (P3), pensei que ia subir o Matter Horn com essa sapatilha. É impressionante em relação ao antigo, tanto que antigamente não se fazia vias de 7º, 8º, não tinha pisante para isso. Os lances mais difíceis, no campo escola de Cascadura, eu fazia descalço.

E como é agora você escalar paredes de agarrinhas? Você está gostando mais desse estilo ou tem saudade das fendas e chaminés?
Carrô: Para mim, hoje, a melhor a técnica é sair de um paredão que não exija todo o seu corpo físico. Mas onde eu me sinto melhor? Realmente ontem no Olimpo eu estava que nem pinto no lixo. Não tive dificuldade em nenhum lance, porque é oposição e era isso que a gente fazia, né, usava muito braço. Essa dança cansa mais, mas eu me sinto bem melhor. Na Stop eu me sinto na minha casa. Naquela época era isso. Tem uma fenda? Então é por aí que vamos.

E o desafio da escalada naquele tempo e agora?
Carrô: A sensação é a mesma: a frustração quando não me sinto bem numa via, eu volto chateado. Quando faço muito bem, fico satisfeito.

Você se sente mais seguro hoje por causa da evolução dos equipamentos?
Carrô: Quando você não tem a coisa, você não sabe, né. Naquela época podíamos ter descoberto o UIAA e não descobrimos. O oito usávamos só para descida; e a segurança era no ombro e pronto. Naquela época nós confiávamos no material de forma direta, pois a corda não ia no baudrier e sim na nossa cintura. O mosquetão, após passar pela corda, ia direto para o grampo e hoje há dois mosquetões e entre eles uma costura. Na descida, deixávamos a corda percorrer pelo nosso corpo ou através de uma solteira, também atrelada ao corpo e hoje o aparelho de descida fica normalmente na alça do baudrier. Conclusão: ontem o material estava sempre em contato conosco, pois só se rompendo teríamos uma queda fatal e hoje dependemos exclusivamente da costura nas costuras das fitas, do baudrier etc. Estamos sempre por uns fios. Até hoje ainda não me acostumei com a total segurança do baudrier.

Qual é a importância do Cerj na sua vida?
Carrô: As coisas mais importantes da minha vida eu devo a este clube. Eu perdi minha mãe com quatro anos de idade e meu pai com nove. Fui criado pela minha avó; uma pessoa fantástica, mas desde os quatro anos eu nunca tive casa. Eu sempre morei fora da minha casa. Essa sensação acompanhou o resto da minha vida até me casar. Sempre tive que mostrar que eu estava capacitado a seguir em frente, eu não podia errar. Antes de entrar para o clube, eu jogava futebol e um amigo, Paulo Cesar Miranda, me trouxe para o alpinismo. Quando cheguei aqui, eu encontrei gente que me abraçava, me afagava. Eu tive a sorte de me adaptar rapidamente bem a este esporte. Era ótimo, porque meus fins de semana estavam completos. Eu saía de casa sexta à noite e voltava no domingo. Não precisava mais dar satisfação às pessoas; e eu já era eu, já me satisfazia a mim mesmo até que – eu trabalhava na Caixa Econômica, onde comecei aos 14 anos – conheci o Bravin, que me levou para trabalhar com ele. Depois o Pellegrini me levou para trabalhar no Pão de Açúcar. Eu ia ser chefe de um grupo, mas eu nunca tinha chefiado ninguém. O Pellé falou: ‘você não faz excursão com 30, 40 pessoas, não dá tudo certo?’ Eu tinha 24 anos e fui chefiar pessoas de 30, 32 anos de casa.
O clube me deu a profissão da minha vida (a partir do curso de programação de computação aberto pelo Claudio Leuzinger, guia do Cerj). Conheci a Layla no clube e ela me deu dois filhos. O clube realmente foi o que me deu e hoje está me dando maior prazer.

A entrevista acima foi concedida ao Julio Mello, Miriam Gerber e Silvia Noronha, em 16/01/2006