VOLTA DA ILHA GRANDE
Marcus Vinicius Carrasqueira

Faço parte de vários grupos de montanhistas, alguns independentes dos clássicos clubes cariocas e fluminenses. Em Trilhando Com Amigos, Patrícia Reis postou convite para dar a volta na Ilha Grande em março, após o Carnaval, mês da sua licença especial no Serviço Público. Aceitei de pronto, pois faz tempo que alimento o desejo de realizar essa travessia completa que fiz em 1995 e não mais repeti como um todo, apenas percorri vários trechos picotados e desconectados entre si.
Houve muito interesse dos colegas, mas pouca adesão nesse grupo específico. Pedi permissão à idealizadora da proposta para estender o chamado aos clubes nos quais participo, CEG, CEL e CERJ, pois viajar em matilha é mais prazeroso e seguro. Alguns se inscreveram, porém desistiram mais à frente por motivo de saúde ou compromissos familiares. Então seguimos nós mesmos: Patrícia, seu filho Pedro Reis e eu!
Sábado, 12.mar.22
Decidimos reservar a semana de 12 a 20 de março para encaixar a travessia. Marquei férias atrasadas nesse período, estudei os traçados, conferi a previsão climática e seguimos com muito otimismo e alegria no sábado, dia 12. Pegamos a barca das 8 horas da manhã em Mangaratiba, descemos no Abraão, tomamos um café rápido, compramos algumas frutas, checamos nosso pedido de autorização para cruzarmos as praias do Sul e Leste no escritório do INEA e partimos para a trilha por volta das 10:30 horas.
Fim de semana de muito movimento na Ilha Grande! O tempo estava bastante ensolarado, temperaturas na faixa dos 35° C, alta umidade no ambiente, conjunção que contribuiu para potencializar o desgaste físico. Banhistas com poucas roupas transitando para a cachoeira da Feiticeira nos olhavam com um misto de surpresa e incredulidade, aqueles seres estranhos cobertos de panos coloridos nas pernas e braços, carregando enormes mochilas e suando a cântaros: um tipo exótico de pagador de promessas?
Passamos por cima da praia da Feiticeira, entramos na estreita praia da Camiranga quando a maré estava subindo (tivemos que fazer algum contorcionismo para não molhar as botas), cruzamos a praia do Perequê, praia do Galo e chegamos na praia do Saco do Céu por volta das 14 horas, onde decidimos ficar naquele dia. Seguimos um roteiro pesquisado na internet que nos pareceu adequado. Encontramos um honesto prato-feito no restaurante da Jaíza por 30 reais, montamos nossas barracas na Pousada & Camping da Gata Russa por 50 reais por cabeça, com um excelente café-da-manhã incluído no preço. Sebastian, o uruguaio que gerencia o lugar, deu um retoque no gramado. Aproveitamos o resto do dia para descanso e reconhecimento do entorno, uma vez que acordamos de madrugada para pegar a barca, principalmente Patrícia e Pedro, que moram em São Gonçalo. De noite fomos comer uma pizza média na Suítes Saco do Céu, de propriedade da Lidiani de Araújo (com i), seis pedaços por 55 reais, pequena extravagância que nos permitimos nesse primeiro dia, normalmente o mais difícil.
Domingo, 13.mar.22
No domingo metemos o pé na trilha às 8:30 horas. Passamos pela praia de Japariz, local onde cresceu um incrível complexo de restaurantes com capacidade para atender centenas de clientes simultaneamente que retornam dos passeios marítimos da Lagoa Azul. Depois chegamos na praia da Freguesia de Santana com sua igreja secular de mesmo nome e seguimos para a vizinha praia de Araçá. Nesse ponto inicia a primeira grande subida da travessia, acesso para a praia do Bananal. Deparamo-nos com diversas famílias que ainda mantêm traços da cultura caiçara dos antepassados, através dos roçados domésticos de mandioca, feijão-guando, milho, banana, cana-de-açúcar, abóbora e abacaxi. Por toda a ilha é possível ver clareiras que se destacam nas encostas florestais, testemunho de uma época não muito distante na qual havia cultivos mantidos por pessoas com origem nos povos nativos.
Aportamos na praia do Bananal por volta do meio-dia, em meio a grande movimentação de barcos e turistas. De acordo com o roteiro que seguimos ali deveria ser o próximo ponto de pernoite. Contudo, pelo antecipado do horário, decidimos continuar em frente após uma parada para descanso e alimentação. Deliciei-me com sacolé de cupuaçu e outro de açaí. Uma tradicional colônia de japoneses pode ser facilmente identificada nessa comunidade, seja pelos traços genéticos dos descendentes, nas cores das habitações ou nos nomes das pousadas e embarcações.
A praia em sequência foi Matariz, a qual atravessamos contornando as ruínas da última indústria de salga de peixes que permaneceu operacional até a década de 1980, quando fechou suas portas em definitivo. Essa atividade econômica foi iniciada por japoneses na década de 1930, sendo que existiram dez indústrias desse tipo na Ilha Grande. Algumas dessas instalações foram transformadas em pousada, restaurante ou operadora de mergulho. Após vencermos um aclive com facilidade, descemos para a praia de Passaterra e paramos na praia de Maguariquessaba perto das 15 horas, onde negociamos nosso acampamento com a Dona Alda, proprietária do restaurante Cantinho Doce, ao preço de 25 reais por cabeça com direito ao uso do banheiro e chuveiro.
Tomamos banho de mar e, após a saída do derradeiro barco com clientes, afastamos mesas e cadeiras e montamos nossas barracas na areia plana, espaço protegido das chuvas por cobertura chique de sapê muito bem construída. Fizemos nosso almojantar ali mesmo, ao preço de 40 reais o prato-feito. Fomos premiados à noite com uma bonita vista da cidade de Angra dos Reis iluminada no horizonte. Certamente o restaurante entra para a lista dos locais inusitados onde já acampei nessa vida de montanhista!
Segunda-feira, 14.mar.22
Na segunda-feira tomamos o café-da-manhã que levamos, pois Dona Alda não oferece esse serviço. Partimos às 8 horas para as outras praias que formam a enseada do Sítio Forte, sendo essa homônima a primeira que adentramos. São terras pertencentes ao Banco Safra, com escola e casas padronizadas, tendo no Seu Fernando a liderança comunitária local. Em seguida passamos pela praia da Tapera, uma fazenda à beira-mar, onde vimos vacas contrastando com o oceano. Por fim, paramos para descanso na praia de Ubatubinha antes de encararmos outra subida. Descemos na praia da Longa, típica comunidade de pescadores. Observamos vários barcos pesqueiros ancorados, outros em terra sendo reparados e homens trabalhando na limpeza de peixes.
Outra ascensão/descenso da trilha e alcançamos a grande praia de Araçatiba ao meio-dia, polo turístico e comercial com concentração de pousadas, hosteis, camping, mercados, restaurantes e lanchonetes. Percebemos uma dinâmica diferente na rotina comunitária, com trabalhadores construindo/consertando habitações, crianças uniformizadas indo para a escola e embarcações trazendo mantimentos de reposição. Ainda assim, vários turistas podiam ser vistos nas areias e bares nesse primeiro dia útil de travessia. A maioria esmagadora das casas (independente da classe social) ou é um negócio em si, ou tem um pequeno negócio montado, demonstrando como a Ilha Grande se especializou no ramo do turismo. Também a maior parte desses comerciantes incorporou o péssimo hábito de repassar ao consumidor a taxa de 3,5% do operador da máquina nos pagamentos com cartão, prática mesquinha e antipática. Agravante adicional é o fato de as contas serem feitas de cabeça, sempre arredondando para algo equivalente a 5%.
Desde nossa saída do Abraão notamos que as trilhas serviram de caminho para a instalação de linha de transmissão de postes com fios, passando por todas as praias até então. Esses postes se transformaram na principal sinalização da travessia, bastando segui-los. Além disso, essas trilhas que interligam as praias estão sendo roçadas regularmente por moradores, dando um aspecto de segurança e conforto ao caminhante. Em oposição, reparamos pequenos moirões fincados desde o início da caminhada, claramente fabricados para sinalizar a trilha. Ocorre que essas estruturas foram desaparecendo à medida que nos afastamos do núcleo urbano, além de não aceitarem pintura de setas direcionais para esquerda ou direita, apenas para frente. Também não foram colocados nos lugares em que mais se precisa de sinalização, as bifurcações duvidosas. Em dado momento os moirões estavam sem nenhuma pintura, apenas o pedaço de madeira entalhado, rareando em frequência e sumindo por completo abruptamente. A ideia de sinalizar a trilha é excelente, porém o projeto precisa ser revisto.
Como ainda havia tempo rumamos para a praia Vermelha, chegando perto das 14 horas. Nossa intenção foi conhecer a gruta do Acaiá no dia seguinte, por isso fizemos essa alça adicional no roteiro que seguíamos, uma vez que o caminhante autor do relato não passou por essa praia. Vila mais modesta em relação à anterior, procuramos um morador que aceitasse nossas barracas no seu quintal. Conhecemos o Seu Tuca (marido da Dona Teca), codinome japonês, que nos ofereceu pernoite em casa mobiliada (geladeira, fogão, camas, televisão) momentaneamente desocupada que ele aluga no sistema airbnb, por 30 reais por pessoa. Aceitamos sem discutir!
Após nos instalarmos fomos à procura de um lugar para almoçar. Finalmente encontramos o célebre prato-feito caiçara, que devoramos por 30 reais no restaurante caseiro ao lado do canal. Voltamos para a casa, rearrumamos as mochilas, lavamos algumas roupas e relaxamos no final de tarde enquanto a chuva de verão escorria pelo telhado e o dia terminava. A noite caiu, o tempo firmou e fomos à procura de um lanche noturno. Comemos deliciosas empanadas a 15 reais cada na Pizza da Vermelha, administrada por um casal cuja mulher é argentina. Dormimos o sono dos justos!
Terça-feira, 15.mar.22
Na terça-feira acordamos cedo para fazer um bate-volta na gruta do Acaiá, após tomarmos o café-da-manhã que levamos. Saimos às 7 horas. O atrativo fica em terras particulares, cujo proprietário cobra 25 reais a entrada, preço que achei abusivo. Sem dúvida trata-se de uma maravilha ímpar da natureza que deve ser obrigatoriamente visitada, porém não se verifica serviço de retorno ao visitante compatível com o valor cobrado. Chegamos de volta na praia Vermelha às 10 horas, pegamos as mochilas já prontas e subimos outra encosta de respeito rumo à praia de Provetá. Em cada subida dessas transpirava litros de água como não ocorria há muito tempo! O calor intenso combinado com a alta umidade persistia e nos castigava!
Pontualmente às 12 horas tiramos nossas cargueiras das costas e descansamos na sombra da igreja da praça central. A vila de Provetá é a segunda maior comunidade e a segunda maior economia da Ilha Grande, composta predominantemente de evangélicos. Seu desenho urbano possui logradouros públicos, espaços para pedestres e ruas calçadas com bloquetes. Tem todo tipo de comércio: padaria, hortifrúti, material de construção, além das hospedagens de praxe. Almoçamos um bom hambúrguer no trailer ao preço de 15 reais.
Permanecemos cerca de uma hora na vila. Avistamos operários uniformizados da companhia de energia elétrica trabalhando na revisão de todos os postes e lâmpadas da iluminação pública. No mercado uma beata desatenta me perguntou se eu era o homem da luz, ao que respondi que não, mas também não era das trevas, piada infame que arrancou estrondosas gargalhadas entre os evangélicos presentes, ou seja, todos os clientes e funcionários. Refeitos, tocamos para a praia do Aventureiro, acessada após outra subida. Dessa vez o traçado era mais suave, mas não impediu o suadouro.
Às 15 horas terminamos o esticão desse dia, sendo que a trilha sai direto no camping Nas Ondas (40 reais por pessoa), onde decidimos montar as barracas sob a proteção de lona para tal finalidade. Na bucólica Aventureiro esbarramos em pouquíssimos turistas diluídos entre escassos moradores, deixando a praia praticamente inteira para nosso deleite! Até então as comunidades do mar de dentro pelas quais passamos se mostraram mais movimentadas, porém aqui me senti mais à vontade, o dono do pedaço! Desfrutei do enorme espaço livre para tomar banho de mar, revisitar o coqueiro torto, caminhar pela areia, perambular entre os blocos de pedras e fazer um breve reconhecimento da pequena urbe.
Jantamos um prato-feito na lanchonete do Camping do Verte, ao preço de 35 reais. Reservamos a refeição à tarde, pois não havia tanta gente assim nesse dia. No passeio de volta, várias luzes piscantes e coloridas (azul, vermelha, verde, laranja) instaladas em dois campings chamaram nossa atenção, maculando a pureza natural do lugar. Cada casa possui um gerador movido a diesel, produzindo energia elétrica e muito barulho. São desligados no máximo às 22 horas. Um chuvisco fraco permaneceu indo e voltando durante a noite. Sem perceber, adormecemos embalados pelo sonífero mantra das ondas.
Quarta-feira, 16.mar.22
Acordamos com o nascer do sol de frente para as barracas, belíssimo espetáculo! Tomamos o café-da-manhã que levamos. Ao sairmos às 7:30 horas vimos muitas embarcações de vários tipos. Um barco estava levando as crianças para a escola em Provetá, assim como fazem as demais praias, que enviam suas crianças para Araçatiba ou Abraão, as três comunidades com ensino mais avançado. Todas as praias da Ilha Grande possuem serviço de barco-taxi para todos os lugares, algumas a qualquer horário, motivo pelo qual houve redução de transeuntes nas trilhas (minha percepção). Nos ofereceram transporte para Parnaioca por 40 reais por pessoa. Recusamos educadamente, somos montanhistas!
Esse é o dia mais belo e perigoso da travessia! Ficamos expostos às belezas e periculosidades da paisagem, vez que caminhamos por extensas praias abertas em esplendoroso estado de natureza selvagem, sem pontos de captação de água potável até o destino dessa etapa: Parnaioca. Começamos cedo, nos valendo da maré baixa que ficaria por várias horas. A passagem pelo escorregadio costão rochoso (considerando o peso das cargueiras) deve ser feita com atenção e mar manso, pois uma ressaca inviabiliza seu cruzamento por alguns dias (inclusive impedindo o aporte de embarcações no Aventureiro). Essa condição deve ser pesquisada com antecedência e monitorada durante a trilha. A permissão concedida pelo INEA para atravessar a Reserva Biológica das Praias do Sul e Leste está condicionada à coleta documentada do lixo espalhado pelas suas areias. Levamos sacos de 200 litros para cada um de nós.
Entusiasmados, iniciamos o recolhimento de incontáveis objetos plásticos depositados pelas ondas. À medida que o sol esquentava, a areia afundava, os sacos enchiam, a água acabava, o tempo passava e a primeira praia não terminava, fomos perdendo motivação pelo enorme esforço que consumia nossas forças. Preocupados com a elevação da temperatura, da radiação solar e da maré, decidimos avançar na travessia do canal de escoamento das águas salobras das lagoas internas que separa ambas as praias, último obstáculo geográfico. Passamos tranquilamente com água pelos joelhos.
O sol implacável me fez caminhar no automático, fiquei no modo inconsciente! O final da praia parecia uma miragem, pois andava arrastando o pesado saco de lixo recolhido – que funcionava como âncora – e nada de chegar. Depois de 7 km de praias finalmente alcançamos a sombra, deixamos os sacos ao pé de uma árvore e fotografamos o conjunto para enviar posteriormente ao INEA, conforme orientação daquele órgão público. Próximo passo foi acessar a trilha para Parnaioca. Falsas entradas e marcações antrópicas ao lado da saída do riacho seco nos fizeram bater cabeça no mato. A verdadeira entrada é uma abertura na vegetação cerca de 15 metros antes do final da praia, que costuma ser sinalizada com frágil madeira em pé que sempre é tragada pelas ondas das ressacas.
Mais duas horas de trilha por dentro da Mata Atlântica e chegamos na deslumbrante Parnaioca, às 15 horas. A proprietária do camping Nas Ondas recomendou o camping da Marta, 40 reais por cabeça. Montamos as barracas sob a proteção de lona para tal finalidade. Almoçamos uma tapioca feita na hora, por 15 reais. Nessa vida de montanhista venho observando que a grande deficiência nos campings brasileiros é banheiro. Aumenta-se a área para armação de barracas, todavia o número de banheiros permanece inalterável. Esse camping chega ao extremo de disponibilizar somente um banheiro masculino e outro feminino, onde cada um possui vaso e chuveiro juntos. Menos que isso seria retornar à era do homem primitivo!
Rever minha querida Parnaioca depois de tantos anos foi como abrir uma janela para o passado de boas memórias! Corri para meu rio do coração, para meu pocinho predileto, reencontrei minha cachoeirinha favorita, me acomodei na laje rochosa em meio às lembranças enquanto dezenas de pitus saiam debaixo das pedras para beliscar meus pés submersos. Caminhamos despreocupados pela praia, relaxando em corpo e alma após um estressante dia. Nessa última noite do circuito tivemos o jantar mais original de toda a semana: prato-feito, ao preço de 40 reais! Fomos premiados com uma noite de céu limpo e lua cheia! Passear pela praia deserta apenas com luz natural do luar é uma rara benção que deve ser aproveitada ao máximo. Recolhido tardiamente na barraca e com o espírito tomado por overdose de alegria, o sono veio inebriante!
Quinta-feira, 17.mar.22
Despertamos para o último dia da travessia com o surgimento da claridade. Mais uma vez tomamos o café-da-manhã que levamos. O camping oferece esse serviço em sistema semelhante à padaria: sanduíche, bolo e copo de café ou achocolatado com preços individualizados. Começamos a caminhar às 7:30 horas. O início da trilha passa pelo camping da Janete, que nos pareceu ser de um nível superior ao que ficamos. Despedimo-nos dos colegas argentinos que conhecemos no dia anterior e do Oswaldo, dinossauro vivo da era hippie que sobrevive de vários conhecimentos e habilidades manuais em mecânica, construção civil e jardinagem, gente boa.
A trilha é bem agradável, totalmente sombreada pela Mata Atlântica, com pontos de água e não possui grandes subidas, pois segue acompanhando o nível do terreno, paralela à linha da costa. Por todos aqueles dias não ouvimos nenhum guinchar dos bugios, algo tão comum nos bandos que habitam as matas locais. A Ilha Grande registrou sete mortes humanas no surto de febre amarela de 2018, sendo Angra dos Reis o município fluminense com o maior número de casos, doze. Por uma nefasta associação de medo, ignorância e desinformação, a população caçou os macacos até a morte por achar que eles transmitiam a moléstia. Lamentável, esses animais são tão vítimas da doença quanto os humanos! Chegamos na familiar praia de Dois Rios às 11:30 horas, seguindo para um lanche no restaurante do Rodrigo.
Essa comunidade caracteriza-se por ter sido criada em 1903 como colônia correcional. No Estado Novo (1937 e 1945) o presídio recebeu presos políticos vindos de Fernando de Noronha. Em 1954, o governador Carlos Lacerda fechou o Lazareto do Abraão, transferindo presos comuns para a prisão de Dois Rios, renomeada para Instituto Penal Cândido Mendes. Na década de 1970 ali nasceu o grupo Falange Vermelha, embrião da futura facção criminosa Comando Vermelho. Em 1994, o governador Leonel Brizola desativou e implodiu os prédios de detenção. Pelas suas celas passaram vários personagens da nossa história contemporânea, entre os quais Agildo Barata, Carlos Marighella, Graciliano Ramos, João Francisco dos Santos (Madame Satã), José Carlos dos Reis Encina (Escadinha), Lúcio Flávio, Nelson Rodrigues Filho, Orígenes Lessa, Rogério Lemgruber e William da Silva Lima (Professor). A UERJ foi contemplada com o espólio da penitenciária e reformou antigas estruturas não derrubadas, criando o Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentável, em 1995, e o Museu do Cárcere, em 2009, esse último sendo palco da nossa proveitosa visita no horário de descanso.
Mochila nas costas novamente e prontos para o final da travessia. Gostaria de esticar para Lopes Mendes e fazer a volta mais completa possível, porém não encontrei referências confiáveis no trecho que liga Caxadaço a Santo Antônio, Todos os relatos estudados, mapas analisados e moradores consultados indicavam que essa trilha caiu em desuso, fechou, está praticamente intransitável. Lembro que tive de bater facão em alguns trechos na última vez que passei, cerca de 20 anos atrás. Decidimos seguir até Abraão pela estrada de terra. Começamos às 13 horas, traçado fácil com sombras pelo caminho. Atingimos o famoso mirante de onde pode-se avistar a vila, o mar, as embarcações e o continente. Comemoramos o fechamento do circuito com muito júbilo, visualizar a comunidade me deu uma sensação de dever cumprido, de vitória, de premiação, de vencer uma batalha contra mim mesmo, meus próprios limites!
Descemos pela trilha, entramos pelos fundos da vila e procuramos um lugar para nos acomodarmos. Pisamos na rua principal em torno das 16 horas, poderíamos pegar a barca das 17 horas de volta para Mangaratiba, mas Patrícia propôs passarmos a noite no Abraão em alguma pousada para descansarmos com um pouquinho mais de conforto. Aceitei na hora, chegamos um dia antes do previsto no roteiro e tomar um banho de agrados urbanos faria bem à moral. Encontramos no abrigo coletivo do Camping e Hostel do Bicão (70 reais a cama) uma irrecusável relação custo-benefício, haja vista que não havia ninguém hospedado naquele dia.
Depois dos asseios corporais e de estrear a roupa limpa guardada para esse propósito, fomos circular pelas ruas do vilarejo. Todas as privações que passamos nos dias anteriores estavam à disposição em qualquer esquina. O crepúsculo chegou, as luzes se acenderam, a lua despontou e escutamos gritos de crianças, latidos de cachorros e pessoas correndo para a praia com suas câmeras na mão. Dezenas de enormes guaiamuns invadiram simultaneamente as areias como que obedecendo a um comando central, proporcionando um raro espetáculo para deleite de todos. A combinação de lua cheia, maré alta e estação do ano despertou o instinto de procriação desses caranguejos, realizado através da poligenia – a fêmea acasala com vários machos nessa noite. Quem sou eu para duvidar da sabedoria da natureza?
Passado o frenesi dos crustáceos fomos procurar um restaurante para nossa glamourosa despedida. Elegemos um lugar com cardápio variado, bom preço e administrado por uma família de haitianos batalhando pela sobrevivência em terras tupiniquins. Depois de muito pensar escolhemos… prato-feito! Mas não qualquer prato-feito, o meu foi com camarão, ao preço de 55 reais! Acho que ficamos viciados nessa comida. Mais uma voltinha para ver as modas, apreciar o movimento, tomar um sorvete e cair na cama. O ar-condicionado foi um luxo que não reclamamos, ao contrário!
Sexta-feira, 18.mar.22
Acordamos sem pressa, sem ter que desmontar barracas e sem precisar preparar café-da-manhã. Preguiçosos igual a Macunaíma! Fomos para uma padaria e voltamos para pegar as mochilas. Uma certa nostalgia me acometeu, foram dias perfeitos passados em ambientes (quase) naturais, afastados das coisas ditas citadinas, a imersão que preciso para minha saúde mental. As companhias foram por demais agradáveis, rolou uma química de grande entrosamento e nenhum conflito. Pedro é um jovem solícito, atencioso, sensível, vai prestar vestibular para Cinema e parece que leva jeito, sempre com sua câmera à mão procurando as boas imagens e o melhor ângulo, uma pessoa do bem, vai trilhar um bom caminho. Patrícia é uma montanhista experiente, possui liderança, iniciativa e espírito de solidariedade, exerce a Psicologia no trabalho com crianças/jovens em condições de vulnerabilidade e/ou sofrimento psíquico, dona de retórica paciente e envolvente. Agradeço sinceramente a ambos pelo prazeroso acompanhamento nessa jornada, não teria conseguido completar os 70 km da travessia se não fosse por vocês.
Embarcamos às 10 horas para Conceição de Jacareí (70 reais a passagem), onde pegamos a van para Mangaratiba por 5 reais. Enquanto a Ilha Grande diminuía no horizonte, voltei meu pensamento para as mudanças mais perceptíveis que testemunhei nesse hiato de 25 anos. As construções de alvenaria se multiplicaram nas comunidades costeiras, algumas empregando significativa quantidade de material, demonstrando certa prosperidade econômica em geral. As antigas canoas de pesca presentes nas praias desapareceram, viraram objetos decorativos em pousadas, restaurantes e jardins, substituídas que foram por modernas embarcações de fibra. A energia elétrica chegou em todos os lugares, seja por cabos/linhas de transmissão ou geradores, assim como a internet, trazendo a reboque centenas de aparelhos domésticos de wi-fi. Muitos novos moradores que deixaram as neuroses dos centros urbanos e se mudaram para lá, em busca de uma vivência mais calma, tranquila e produtiva, acertando na opção de projeto de vida. Em contrapartida, a ilha permanece sendo a república independente dos gringos, verdadeira legião estrangeira espalhada por todos os lados, alguns residindo e vivendo dos seus negócios (inclusive casando-se com nativos), a maioria turistando em qualquer época do ano. Finalmente, para minha surpresa, fui reconhecido e efusivamente saudado pelos mosquitos em todas as praias que passei, esses seres sociáveis que adoram a presença das pessoas nas suas paragens, se achegando cheios de intimidade, carência e fome!
Percorrer e adentrar nas diversas trilhas, praias e comunidades da Ilha Grande, onde cada uma se apresenta de forma ímpar com sua própria realidade, geografia, demografia, economia, etnia e estratificação, além de interagir com moradores, visitantes e meus parceiros de travessia, foi um processo de profunda evolução pessoal, uma experiência sócio-antropo-ambiental que me faz voltar mais enriquecido como ser humano! Quando será a próxima?

Travessia do canal entre as praias do Sul e Leste.
Acampamento no restaurante Cantinho Doce, praia de Maguariquessaba.
Coleta de lixo na praia do Sul.
Nascer do sol na praia do Aventureiro.
Ponto pitoresco na praia de Provetá.
Camping Nas Ondas, praia do Aventureiro.
Antiga colônia penal e atual Museu do Cárcere, praia de Dois Rios.
Praia de Camiranga.
Gruta do Acaiá.
Praia da Freguesia.