Nessa última semana eu e Caiê resolvemos passar dois dias na montanha. Como nossa ideia era caminhar, escolhemos fazer as travessias do Rancho Caído e da Serra Negra, ambas no Parque Nacional do Itatiaia. Aproveitando nossas últimas semanas como moradores do Vale da Santa Clara (Maromba/Visconde de Mauá) essa rota nos possibilitava sair e chegar das travessias sem utilizar qualquer outro tipo de condução, além das forças dos nossos corpos.

A Travessia do Rancho Caído começa próximo à Cachoeira do Escorrega, no vilarejo de Maromba, e desde o ano passado o PNI passou a permitir a realização dessa travessia no sentido Maromba – Rebouças.

De casa, no Vale da Santa Clara, até o início da travessia são aproximadamente 6km que, com mochilas cargueiras, levamos mais de uma hora para percorrer. Logo cedo iniciamos o percurso de 27km que liga Maromba ao Abrigo Rebouças. E foi um grande “toca pra cima”.

A caminhada se inicia com a mata densa, grandes árvores e alguns riachos para atravessar e à medida que progredíamos em direção à parte alta do Parque, era nítida a mudança da vegetação que ia se tornando mais rasteira. Pouco depois de passar pelo trecho mais íngreme, conhecido como “mata-cavalo”, já era possível avistar o imponente maciço da Agulhas Negras. Como tudo que sobe, uma hora começa a descer (ao menos um pouco!), iniciamos uma leve descida e depois de 3h30 de caminhada chegamos à área de camping selvagem do Rancho Caído. Estávamos animados, ainda era cedo e o céu estava limpo, fizemos nosso lanche no acampamento e, revigorados, retomamos a caminhada. Depois de uma curta subida já avistamos o grandioso Vale dos Dinossauros. Até então, nós só tínhamos visto o Vale do alto das Agulhas Negras, uma visão de cima, algo bem diferente de caminhar por aquela imensidão. É nessas horas que nos damos conta da insignificância desse corpo humano em meio a imensidão das montanhas e vales, mas, ao mesmo tempo, nos damos conta também da potência desse mesmo corpo que é capaz de atravessar esse horizontes com sua própria força.

Seguimos caminhando e depois de mais uma subida já estávamos próximos aos Ovos da Galinha, passamos pela Cachoeira do Aiuruoca e quando chegamos na bifurcação que vai para os Cinco Lagos, quase aos pés da Pedra do Altar, paramos para comer. Dali até o Abrigo Rebouças foi uma caminhada tranquila, chegamos cedo, a ponto de encarar a água gelada do banho sem grande sofrimento. Ao total levamos 7h40 de caminhada.

Depois da barraca montada no camping totalmente vazio e do banho tomado, só nos restava descansar para, no dia seguinte, voltarmos para casa via Serra Negra.

Tudo ia muito bem até que por volta das 22h começou a chover forte, e a chuva seguiu  alternando sua intensidade até por volta das 2 horas da manhã. Eu, que dormia e acordava um tanto preocupada com a chuva, concluí que podia chover o quanto bastasse desde que o dia amanhecesse com sol. Pobre de mim que desconhecia as descidas da Serra Negra após a chuva.

Nos levantamos assim que o dia começou a clarear e ainda pudemos desfrutar do  impagável amanhecer com a vista das Agulhas Negras. Retornamos para nossa caminhada rumo a Cachoeira do Aiuruoca, de onde parte a bifurcação para a Travessia da Serra Negra. Por algum motivo nós imaginávamos que essa travessia percorria um longo trecho de crista, ledo engano, grande parte dela é descendo e subindo vales, mais descendo que subindo. Assim que pegamos a bifurcação à esquerda, antes de chegar na Cachoeira, caminhamos por um breve trecho de crista e logo começamos a descer, passamos por bosques incríveis, daqueles que dá vontade de montar acampamento e ficar dias seguidos. À medida que descíamos a vegetação se adensava e, como em toda floresta úmida e íngreme, a trilhas estava muito traiçoeira depois da chuva, os escorregões foram inevitáveis, assim como o pés molhados que assim permaneceram durante todo o dia.

Apesar de termos descansado no dia anterior, era nítido que nosso ritmo estava mais lento, a trilha molhada e o peso nas costas exigia maior cuidado. Estávamos um pouco apreensivos se de fato conseguiríamos realizar os 32km de percurso e mais os 2km para chegar em casa naquele dia ainda. Como estratégia optamos por fazer poucas e curtas paradas e conversar apenas o necessário, estávamos concentrados. Durante o primeiro trecho da Travessia – até a Pousada Pico da Serra Negra, no bairro rural de Serra Negra – a caminhada é acompanhada pelo barulho constante do rio Aiuruoca, o qual atravessamos algumas vezes, assim como inúmeros riachos, e o desejo era não estar só de passagem. Chegando na Cabanas do Aiuruoca, lugar onde tempos atrás ainda se permitia acampar, o manejo da trilha era mais presente, sinal de que nos aproximávamos da zona rural de Itamonte. Até ali, apesar da trilha ser bem pisada e marcada no solo, ela estava relativamente fechada, sem manejo. A partir das Cabanas percebemos a trilha mais aberta e muitas pegadas de equinos. Aliás, parte dessa Travessia ainda é feita à cavalo, especialmente o trecho que liga Maromba ao bairro Serra Negra.

Levamos 6h30 para percorrer aproximadamente 17km e chegar na Pousada Pico da Serra Negra, o único lugar onde se pode pernoitar durante a Travessia, e ainda nos faltavam ao menos 15km. No dia anterior percorremos 27km em 7h40, daí já se tem uma ideia do desafio que foi o segundo dia.

A informação que tínhamos era de que após a Pousada teríamos uma grande subida e depois desceríamos rumo ao Vale da Santa Clara. E foi exatamente isso que aconteceu, enfrentamos pouco mais de 2 horas de subida do Morro Cavado até chegarmos num grande pasto de altitude. Os “trieiros” de homens e bichos eram inúmeros e seguimos sempre nos mais pisados, encontramos inclusive uma figura que puxava sua mula enquanto pastoreava o gado.

E assim iniciamos nossa longa e última descida, foi um eterno “toca pra baixo”.  A essa altura da caminhada os pés já pediam arrego e as bolhas eram inevitáveis. Apesar disso tudo, ficamos muito animados quando conseguimos identificar, no longínquo do horizonte, algumas casas do Vale da Santa Clara. ‘Agora deve faltar só uns 8 km’, pensei, ‘8km de descida e dor nos pés’. Nessas horas não há escolha a não ser seguir.

Depois de caminhar por 12h15 chegamos na Cachoeira da Santa Clara, oficialmente o final da Travessia da Serra Negra, ali ligamos nossas lanternas e caminhamos por mais uma hora para chegar em casa. Chegamos, exaustos e felizes.

E que venha a temporada!!!

Valéria Aquino