Fazer uma travessia de longo curso é sempre algo complexo e, para muitos – como eu – desafiador. Envolve uma logística de transporte (muitas vezes será necessário um resgate), levar aquilo que você sabe que consegue carregar (logo, os equipamentos, roupas e alimentos devem ser todos bem pensados), saber que você provavelmente ficará sem sinal de telefone e internet, e, portanto, deve ter um conhecimento razoável do trecho e de tudo que pode aparecer pelo caminho. Quando ela é realizada dentro de UCs, também é preciso se informar sobre as regras e autorizações necessárias. Ou seja, o planejamento é ponto-chave, como em toda atividade de montanha.

Essa excursão, que se deu entre os  30/05 e 02/06 de 2024 foi planejada pelo guia Daniel Rodriguez , e contou com os cerjenses Marcelo Benhami, Moacyr Nascimento e esta que vos escreve, Verônica Reis. A ideia era realizar duas travessias clássicas do PNI (Parque Nacional do Itatiaia), o primeiro parque nacional do Brasil, que abrange os municípios de Itatiaia e Resende, no RJ, e Bocaina de Minas e Itamonte, em MG. As travessias foram a do Rancho Caído (27km) e a da Serra Negra (32km). Desse modo, já que ambas têm uma das pontas em Maromba (vilarejo que pertence ao município de Itatiaia), não precisaríamos de resgate. Começaríamos subindo a travessia do Rancho Caído, com início próximo à Cachoeira do Escorrega, e depois desceríamos de volta para o mesmo lugar pela travessia da Serra Negra. Para isso, acrescentamos um pernoite, realizado no Abrigo Rebouças, e, em vez de terminarmos a Serra Negra na Cachoeira de Santa Clara, pegamos um atalho para sairmos mais perto da Cachoeira do Escorrega, onde estava o carro.

A excursão começou com alguns percalços, pois tínhamos tido uma baixa na véspera da querida Teresa Aragão, que, infelizmente, estava acidentada e não pôde mais participar. E o Marcelo Benhami estava se sentindo mal do estômago, muito enjoado e enfraquecido, tendo passado mal também na véspera. Então começamos a caminhar sem saber se iríamos até o final. Mas o Marcelo aguentou firme, mesmo não comendo quase nada (com receio de trazer novos desconfortos). E com a benção de dias ensolarados e muita disposição, ele foi melhorando a cada dia e seguimos todos juntos no caminho planejado.

 

Dia 1

Depois de deixarmos o carro em um estacionamento, começamos a caminhar por volta das 9h30. Apesar de não haver uma estrutura de portaria ali em Maromba, havia um letreiro e algumas placas indicando a entrada no PNI, onde um guarda-parque pediu para conferir nossos ingressos e rapidamente nos liberou, desejando uma boa travessia. O dia estava nublado, com um tímido sol ameaçando dar as caras. A subida é gostosa, em sua maior parte por dentro da mata fechada, marcada por um declive razoável (considerando-se a cargueira) e diversos córregos (que, no verão, em época de chuva, podem ser mais chatos de atravessar). Estava fresco e úmido, com um ocasional calor do mormaço. Foi somente bem lá em cima, já na parte alta do parque, que o tempo limpou, o céu estava azul e tivemos a encantadora vista do maciço das Agulhas Negras e outras picos da região, incluindo o Pico do Maromba, que constava em nossos planos para o dia. É muito interessante observar como a vegetação se transforma nesse trecho, passando de uma mata densa para uma mais arbustiva, de campos de altitude.

Chegamos no acampamento do Rancho Caído por volta das 15h. Já havia duas barracas no local, mas conseguimos ocupar um cantinho bem aconchegante mais adiante, junto de um armário recentemente (pós-pandemia) instalado pelo parque para guardar comida e, assim, evitar incidentes com animais famintos (ou meramente curiosos). Mesmo aparecendo mais algumas pessoas mais tarde, somente o nosso grupo acabou utilizando o armário, que então se transformou na nossa cozinha.

Depois de montadas as barracas, eu, Daniel e Moacyr partimos para subir o Pico do Maromba, cuja trilha foi oficialmente aberta ao público em 2023. Foi possível, inclusive, notar o manejo recente do trajeto. O Marcelo tomou a sábia decisão de ficar repousando no acampamento, já que estava ainda um pouco debilitado. A montanha, afinal, continuará lá no mesmo lugar, aguardando novas visitas.

É uma trilha bem legal, que também vale muito a pena fazer como um bate e volta para quem está com base em Maromba ou Visconde de Mauá. Depois de uma pedaço mais íngreme, seguimos pela cumieira que liga o Marombinha até o Pico do Maromba, com várias descidas e subidas. Mesmo estando leves, eu e Moacyr seguimos atrás toda vida, já bem cansados, enquanto Daniel ia à frente, sem demonstrar nenhum sinal de cansaço (e assim se manteve até o final da excursão). Ter realizado ela com o pôr-do-sol foi incrível. Pudemos apreciar um visual fantástico acima de um belo mar de nuvens, acompanhando as mudanças de luminosidade que traziam tons cor-de-rosa e alaranjados, até, enfim, escurecer.

Na descida, com o auxílio de nossas lanternas de cabeça, pegamos um atalho para descer. Já estava bem frio, mas eu e Moacyr ainda encaramos um banho de cacimba com a água congelante do córrego que havia próximo ao acampamento, antes do jantar. Foi uma noite bem gelada; um dos campistas havia marcado -3,5°C em seu termômetro. Daniel e Moacyr resistiram bravamente, com seus sacos de dormir para aproximadamente 10°C. Já eu achei que eu ia perder o meu pé, que não esquentava por nada, mesmo estando protegido por três meias. Mas o artifício de uma garrafa de água quente dentro do saco de dormir sempre dá resultado.

Dia 2

No dia seguinte, todos acordamos com um barulho do que parecia ser um pássaro. Mas aposto que muitos ficaram na esperança de ser um lobo-guará (não foi dessa vez…). Era por volta de 6h quando foi possível ouvir o zíper de várias barracas se abrindo, enquanto os campistas tentavam, em vão, identificar a fonte do ruído. Mas só conseguimos levantar acampamento mesmo lá para as 9h – que acabou sendo nosso horário de saída todos os dias (para a resignação do Daniel, que sempre era o primeiro do grupo a ficar pronto). Foi gostoso aproveitar o solzinho da manhã no acampamento do Rancho Caído, que conta com uma lage de pedra bem espaçosa e confortável (na qual, na noite anterior, ficamos observando o céu estrelado).

Acredito que este tenha sido o dia mais tranquilo de caminhada. Sem tantos declives significativos, fomos nos aproximando do Abrigo Rebouças, onde seria nosso próximo pernoite. Passamos por alguns pontos com a água de córregos congelada e o fenômeno conhecido como “agulhas de gelo” (needle ice), indicando as baixas temperaturas da madrugada. O dia, no entanto, estava bem ensolarado e agradável, permitindo um banho gelado na Cachoeira do Aiuruoca.

Antes da cachoeira, no entanto, entocamos nossas mochilas para subir até os intrigantes Ovos de Galinha – formações rochosas que remetem a uma Stonehenge natural. Lá encontramos algumas vias em artificial – fica aqui a sugestão de prancheta para o futuro!

Ali próximo fica a Pedra do Sino do Itatiaia, o 9º pico mais alto do Brasil, com seus 2670m de altitude. Diante dessa subida considerável, nosso grupo se dividiu novamente: tocamos para lá eu e Daniel, enquanto Marcelo e Moacyr se adiantaram para a cachoeira para curtir o poção espetacular que garantia um bom nado sob o sol.

Em um ritmo intenso, eu e Daniel conseguimos alcançar o topo em meia hora, e, com isso, desfrutar de 40 minutos explorando o extenso cume, que apresenta as características crateras dos diversos picos do PNI. De um lado, uma vista privilegiada para as Agulhas Negras. Do outro, um visual fantástico do Vale dos Dinossauros. É realmente uma pedra impressionante.

A Pedra do Altar também fica ali perto, porém seria um desvio considerável, e já é um cume conhecido por muitos cerjentes – principalmente os que já foram aos famosos Casamentos na Montanha. Logo, deixamos para uma próxima visita.

Seguindo para o Rebouças, paramos para um banho rápido nos poços superiores da cachoeira do Aiuruoca, de modo a não chegar tão tarde no acampamento. No caminho, passamos bem pertinho das fascinantes Agulhas Negras. Quando, enfim, chegamos no Rebouças – nos unindo novamente com o resto do grupo e finalizando a travessia do Rancho Caído –, era por volta das 16h30, e descobrimos que não havia espaço para as nossas barracas: ficamos surpresos com o “overbooking” declarado pelo guarda-parque. Porém, para nossa grande sorte, a solução foi nos alocar em uma das tendas pré-montadas pelos militares, que só seria ocupada por eles no dia seguinte. Montamos nossas barracas ali dentro, um pouco mais abrigados do frio na noite em que o PNI registraria a temperatura mais baixa do ano no Brasil: -8,5ºC, marcados em uma estação a 2450m de altitude, com menos de 100m de diferença do Rebouças (2380m).

Dessa vez, foram o Moacyr e o Daniel que encararam a água cortante do chuveiro do acampamento. Eu e Benhami demos por válido o banho na cachoeira. Quando todos estávamos aquecidos, com nossas muitas camadas de roupas, foi a hora de disputar espaço na mesa do “refeitório”. Com o acampamento lotado, e grandes grupos com agência, a logística fica um pouco mais complicada. Mas em certo momento conseguimos nos acomodar, nos alimentamos e depois nos preparamos para dormir – não sem antes admirar, por mais uma noite, o espetáculo de um céu estrelado com a mancha da Via Láctea bastante visível e deslumbrante.

Dia 3

Acordamos 6h30 após uma noite mal dormida, perturbada, em parte, pelos roncos dos vizinhos. Mas estávamos todos animados com a promessa de um banho quente e uma janta caprichada, garantias do nosso próximo pernoite, que seria na Pousada Pico da Serra Negra – único ponto em que o pernoite é autorizado na travessia da Serra Negra. Ela está localizada em Itamonte-MG e trata-se de uma das propriedade privadas incorporadas pelo PNI quando houve sua expansão em 1982. Cruzamos mais algumas propriedades neste terceiro dia de caminhada, em que pudemos observar algumas pequenas plantações (claramente para subsistência) e fazendas maiores com pasto, provavelmente dedicadas à produção leiteira. Felizmente, hoje em dia já não há mais tantos conflitos fundiários na parte alta do parque, e essas ocupações aparentam ser de baixo impacto.

Saindo do Rebouças, repetimos um trecho de cerca de 4km do dia anterior, passando novamente pela Cachoeira do Aiuruoca. Não muito tempo após a placa que divide os caminhos na parte alta do PNI, e marca a entrada na travessia da Serra Negra, adentramos uma mata fechada de bambuzais e outras árvores da Mata Atlântica. Esse delicioso bosque sombreado nos acompanhou por boa parte da descida, enquanto contornávamos a Serra.

Como nos outros dias, nossa caminhada foi realizada sem esbarrar com muitas pessoas, na tranquilidade do som do vento nas folhas e eventuais cantorias do Moacyr. Passando por um simpático poço do Rio Aiuruoca, eu e Moacyr (que estava se sentindo um pouco febril) não resistimos à tentação de uma parada rápida para um banho revigorante. Daniel e Benhami seguiram caminho, rumo à pousada. No entanto, logo os alcançamos, e continuamos todos juntos, cada vez mais ansiosos para chegar ao nosso destino do dia, que parecia se afastar a cada passo, mesmo após a placa indicando o caminho para a pousada da Sônia e sua família.

Chegamos por volta das 15h30. Que alegria! Benhami e Moacyr mandaram logo um pão com ovo cada um, e uma coca-cola e uma Heineken, respectivamente, enquanto relaxávamos no refeitório da pousada. O espaço da Sônia é uma graça, super bem-cuidado e convidativo, em meio a lindas araucárias. Daniel foi o único que manteve o modo roots e decidiu acampar no terreno. Eu e Moacyr dividimos um chalé, e Benhami ficou em outro. A ideia inicial era tentar fazer o Pico da Serra Negra ainda nesse dia. Mas a trilha era longa (cerca de 3h só para subir, de acordo com um dos moradores), então optamos por salvar esse pico para uma próxima prancheta, e curtir uma tarde mais sossegada, lendo na rede, tomando longos banhos quentes, e jogando conversa fora.

A tão esperada janta foi composta de truta frita, arroz, feijão, salada, purê, farofa e uma sobremesa de queijo minas com doce de leite e/ou goiabada. Nem o Benhami ficou de fora dessa, tendo comido praticamente apenas arroz nos dias anteriores, para não atacar o estômago.

Nessa noite, todos foram dormir cedo e aquecidos – Daniel pegou emprestado um cobertor dos nossos chalés. Ainda faltavam cerca de 15km no dia seguinte para fecharmos nosso percurso.

Dia 4

Após um recheado café da manhã, incluso no pacote da estadia na pousada, partimos bem dispostos para o último trecho da nossa caminhada, que, particularmente, foi o meu favorito. A Serra da Mantiqueira é bonita pra danar! Com um céu límpido e azul, pudemos avistar todo o vale de Visconde de Mauá até a Serra do Papagaio, passando pela Pedra Selada.

Começamos esse trecho com um pouco de dúvida, pois os tracklogs do Daniel e do Benhami divergiam. Seguindo o tracklog do nosso insistente guia Daniel, acabamos dando uma volta um pouco maior, para desagrado de alguns rs, somando talvez uns 4km ao trajeto que constava no tracklog do Benhami. Mas com isso, descobrimos ter pulado a conhecida “subida da misericórdia”. Ainda assim, vencemos uma árdua subida por um longo pasto até encontrarmos novamente o traçado original (ou teria sido o nosso o original? Fica aí o questionamento).

Nessa segunda parte da travessia, já muito mais degradada, com enormes voçorocas e caminhos paralelos (provavelmente muito utilizados pelos moradores do entorno para se chegar até Visconde de Mauá), ficamos, muitas vezes, literalmente imersos na trilha, com as paredes do caminho acima das nossas cabeças. Em outros pedaços, passamos por verdadeiras pontes naturais, com um abismo verde de ambos os lados. Mais para o final, o joelho já pedia socorro, com a infinita descida em trechos acidentados. Mas foi um percurso muito agradável, garatindo sempre o encantamento da bela vista e vários intervalos de sombra.

Já próximos à Maromba, pegamos o desvio para a saída mais perto da Cachoeira do Escorrega, e nele nos deparamos com dois jumentos em nosso caminho: mãe e filho. Em um determinado momento, o filhote ficou mais para trás, logo ao nosso lado, e a mãe parecia um pouco incomodada com a separação, dado o relincho que se sucedeu. Como o sábio Benhami aconselhou, era um momento de manter a calma e abrir passagem para que mãe e filho se reunissem novamente. Com a família reunida, pudemos seguir caminho, e em poucos instantes, após passar por uma propriedade – que depois descobrimos ser o camping Cabanas da Fazenda, cuja dona nos cumprimentou e convidou para ficarmos lá da próxima vez –, chegamos, enfim, no asfalto.

Missão cumprida! Depois de buscar o carro, trocamos de roupa, tomamos sorvete e compramos lembrancinhas em Maringá para levar para nossos entes queridos que ficaram a nossa espera, mandando boas energias durante esses quatro dias afortunados de excursão. Deixo aqui os meus agradecimentos aos meus parceiros de caminhada, sempre gentis e pacientes, e ao CERJ, por nos proporcionar esse tipo de aventura nas montanhas. Que venham muitas mais!