Confraternização após assinatura do acordo de parceria entre a TT e a LMT

Nas minhas férias fui conhecer a Lebanon Mountain Trail, uma trilha de longo curso no Líbano, caminho contínuo que interliga 75 cidades, vilas e aldeias por 470 km de distância em altitudes que variam de 570 a 2.011 metros. O país é pequeno, com superfície menor do que o estado do Rio de Janeiro. A trilha está instalada na cadeia montanhosa que cruza o território no sentido longitudinal nordeste-sudoeste, paralela ao mar, cujo ponto culminante é o pico Qurnat as Sawda, com 3090 metros de altitude. O clima é mediterrâneo, ou seja, verão quente e seco com inverno temperado e de neve pesada nas altitudes mais elevadas, limitando a disponibilidade de água na caminhada.

Trilhas de longo curso com finalidade esportiva não são novidade no Montanhismo. Em 1937, a Appalachian Trail foi sinalizada nos seus 3600 km e, em 1968, a Pacific Crest Trail foi implantada com 4265 km, ambas no EUA. O conceito foi levado para a Europa, que possui onze trilhas, cada uma com mais de 2000 km de distância, dentre elas a Friendship Trail e a Peaks of Balkans. Hoje há no mundo mais de duzentas trilhas de longo curso completamente sinalizadas e em plena operação, seja em países desenvolvidos (Alemanha, Austrália, Canadá, Espanha, França e Reino Unido), seja em nações menos abastadas (África do Sul, Albânia, Argentina, Armênia, Chile, Coréia do Sul, Egito, Eslovênia, Jordânia, Panamá e República Dominicana).

O Líbano não tem clubes de montanhismo, sendo que os praticantes do esporte se organizaram em torno dessa grande trilha nacional. A criação oficial da Lebanon Mountain Trail – como governança jurídica legalmente constituída – foi em 2007, contando com escritório próprio, funcionários, veículo, publicações e captação de recursos. A trilha é subdividida em 26 trechos, indicando uma média de 18 km por trecho. Sua proposta é interligar cidades, vilas e aldeias, permitindo que o caminhante possa acessar facilmente cada trecho e se hospedar confortavelmente ao fim do trajeto escolhido. Não existem áreas de camping nos trechos. As zonas urbanizadas possuem guias e pousadas como prestadores de serviço confiável, todos devidamente credenciados pela Lebanon Mountain Trail.

A Lebanon Mountain Trail surgiu para mim através de convite feito no coletivo da Trilha Transcarioca, objetivando a formalização de parceria entre ambas as trilhas. A Trilha Transcarioca possui acordo de cooperação com a Bruce Trail (890 km no Canadá), a Rota Vicentina (450 km em Portugal) e a Pacific Crest Trail. Os interessados deveriam arcar com suas próprias despesas de transporte, hospedagem e alimentação. Do grupo inicial de oito pessoas, apenas quatro confirmaram participação: minha namorada Andrea Brito, o casal Pedro Cunha e Menezes e Paula Dinis e eu. Deixei o Rio de Janeiro no dia 06.09.18, em voo com conexão em Dubai, chegando em Beirute após 24 horas de viagem. Os representantes da Lebanon Mountain Trail Christian Akhrass, Maya Karkour, Martine Btaich, Pascal Abdallah, Salam Khalife e Zeinab Jeambey nos receberam muito bem e providenciaram transporte e guias durante a se mana em que estivemos na trilha, além de terem estendido as gentilezas para os demais dias de turismo clássico no Líbano, mediante suporte nas cidades de Anjar, Baalbek, Batroun, Beirute, Byblos, Ksara e Trípoli. Fomos postos no colo e mimados, tal qual o cuidado dispensado por uma mãe ao seu filho.

Para entender a trilha que fiz é importante conhecer um pouco da história daquele belo país. O Líbano é o berço dos fenícios, negociantes semitas de cultura marítima que floresceram há 5000 anos e desapareceram há 2500 anos. O principal produto comercializado com os povos vizinhos foi o cedro, na condição de toras como matéria prima para a construção de embarcações, templos e habitações, e resina, substância fundamental no processo de mumificação dos egípcios. Moisés aconselhava os sacerdotes judaicos a utilizarem a sua casca durante a circuncisão e no tratamento da lepra. O intenso desmatamento ao longo dos séculos criou espaços territoriais que foram sendo gradativamente ocupados por estradas, cidades, vilas, aldeias, pequenas propriedades rurais, terraços, canais de irrigação e plantações. Com raras árvores e arbustos, atualmente a paisagem se apresenta com grande amplitude visual, destacando a presença de elementos antrópicos para onde quer que se olhe. Não existem florestas como conhecemos nos trópicos, porém os agrupamentos remanescentes de cedros estão protegidos em pequenas reservas governamentais.

Selecionamos cinco trechos contínuos na parte norte do país para nossa caminhada, iniciando na cidade de Douma e passando por Tannourine, Bcharre, Ehden e terminando em Bqaa Sefrine. Porém, antes de começarmos a trilhar, a organização da Lebanon Mountain Trail preparou uma belíssima cerimônia de assinatura do termo de cooperação com a Trilha Transcarioca, nas terras da Tannourine Cedar Forest Nature Reserve, conferindo muita simbologia ao ato. Os colegas libaneses montaram um protocolo com hasteamento das bandeiras do Brasil e do Líbano lado a lado, inclusive tocando os hinos nacionais dos países ali representados e convidaram o prefeito local e o adido cultural da embaixada brasileira para discursarem, valorizando a celebração do pacto e honrando os presentes com toda a pompa possível. Ao final foi descerrada a cortina do totem metálico que materializa a união entre as trilhas. Assim, a Lebanon Mountain Trail agrega a Trilha Transcarioca ao seu conjunto de parceiros, juntamente com a Bruce Trail e a Jeju Ollé Trail (422 km na Coréia do Sul).

Amanhecemos o primeiro dia no Diwan el Beik Guesthouse, em Douma. Após o delicioso café-da-manhã, preparamos nossos lanches e iniciamos o primeiro trecho, atravessando região de relevo montanhoso e passando por pequenas propriedades rurais, pomares, açudes e canais de irrigação. O manejo racional da água para agricultura e abastecimento doméstico é feito há séculos, aproveitando sua maior fonte: neve do inverno. Dezenas de barragens, represas e tanques de todos os tamanhos vêm sendo construídos para armazenar o precioso líquido durante o verão seco. Nesse dia ensolarado e quente cruzamos apenas uma nascente vertendo das rochas calcárias. Na parte da tarde fomos brindados com um percurso por entre as centenas de exemplares de cedro da Tannourine Cedar Forest Nature Reserve, belo local de realização do evento do dia anterior e que trouxe a sensação de integração com um ambiente natural ainda preservado, terminando a caminhada na pousada Eco Dalida, a 1800 metros de altitude, onde encontramos nossas cargueiras esperando por nós, além de um apetitoso jantar. A equipe de apoio da Lebanon Mountain Trail se prontificou a transportar nossa carga pesada entre as cidades de partida e chegada, permitindo que caminhássemos apenas com mochilinha de ataque. Um luxo que perdurou por todos os demais dias.

A qualidade do café-da-manhã se repetiu no segundo dia. Deixamos a pousada e seguimos a sinalização da trilha, que assumiu um traçado mais suave, pois contornava em nível um dos amplos vales ao pé do pico Qurnat as Sawda. Fomos contemplados com uma inscrição do imperador romano Adriano (76 DC a 138 DC) entalhada na pedra, delimitando terras para a proteção das árvores. Por onde se anda no Líbano é possível tropeçar na História. Após o declínio dos fenícios, veio a conquista de Alexandre Magno, em 322 AC, integrando a região na civilização grega. Seguiu-se a dominação do Egito ptolemaico, que por sua vez foi sucedida pelo domínio do Império Selêucida, a tomada pelo Império Romano no século I AC, do Império Bizantino no século II DC, dos árabes islamitas do século VII, das Cruzadas cristãs na Idade Média, do Império Otomano em 1516, da fuga dos libaneses para Argentina, Brasil e EUA no final do século XIX (em decorrência de perseguições religiosas e conflitos bélicos), da ocupação pelos franceses após o fim da 1ª Guerra Mundial, da independência do país em 1943 e da guerra civil de 1975-1990 (com nova emigração em massa, incluindo o Brasil). Os únicos pontos de tensão atualmente são nas fronteiras com Israel e, em menor escala, com a Síria. Pode-se afirmar que hoje o Líbano vive um período de estabilidade política, econômica e religiosa, favorecendo o turismo internacional e o fluxo de capital, como constatei nas principais cidades. Nesse segundo dia igualmente quente passamos por uma única mina de água potável. Pernoitamos na pousada Tiger House, em Bcharre, onde nos aguardava o melhor jantar que tivemos na trilha. Ainda encontramos tempo para visitar o Museu Khalil Gibran (O Profeta foi um livro muito popular na minha geração).

Nos despedimos de Bcharre com um excelente café-da-manhã e seguimos a sinalização da trilha por dentro da cidade. A Lebanon Mountain Trail interliga cidades, cruzando os ambientes urbanos. Esse foi um dia especial, pois a trilha desce para o impressionante Vale Qadisha, um desfiladeiro longo, profundo, íngreme e detentor de rara beleza cênica, não por acaso declarado Patrimônio Mundial da UNESCO. Atravessamos vários terraços agrícolas em pleno uso por macieiras, oliveiras, parreiras, figueiras, pessegueiros, cerejeiras e ameixeiras, além de moitas de amoras silvestres. Passamos por pomares carregados em todos os dias da caminhada. A trilha insistia em nos alimentar! Observamos diversas cavernas naturais que foram ocupadas por ermitões maronitas (cristãos orientais) fugitivos das perseguições árabes do século VII, chegando a trezentos moradores no seu auge. Ainda hoje três eremitas vivem em grutas no vale. Alguns templos foram construídos nas cavernas dos antigos patriarcas e fazem parte dos atrativos culturais da trilha, dentre eles o Monastério de Nossa Senhora de Qannoubine, onde fizemos uma parada de descanso e reabastecimento de água. A região é uma das mais Cristãs no Líbano. A programação previa pernoite no Monastério de Santo Antônio de Qozhaya, local de término do trecho, mas infelizmente não havia vaga devido a obras nos apartamentos. Seguimos, então, para o plano B, uma pousada no centro de Ehden, vibrante cidade de veraneio a 1.500 metros de altitude. Ficamos no Beit el Ward Boutique Hotel, a mais confortável hospedagem na trilha.

No quarto dia subimos a encosta do desfiladeiro, ao lado do Monastério de Santo Antônio de Qozhaya. Constantemente ouvíamos disparos de espingarda em todos os dias de caminhada, do amanhecer ao anoitecer, alguns tão próximos que nos deixou inquietos, além de ser um barulho irritante. No Rio de Janeiro sei me comportar quando escuto tiros, mas em país vindo de guerra civil…! Perguntamos ao guia o significado daquilo. Constrangido, ele disse que eram homens caçando passarinhos com espingarda, um tipo de esporte muito comum naquela região. Encontramos com um desses homens exibindo um cinto com uns dez pássaros pendurados, todos de porte diminuto. Pelo apurado, existe uma competição no facebook na qual esses imbecis postam fotos ao final do dia de caçada e comparam o resultado entre si. Ao longo de todo o trekking encontramos centenas de cartuchos coloridos espalhados pelo caminho, chegando, em certos pontos de acampamento ou tocaia, a uma concentração absurda na superfície da terra. Essa foi a nota triste da viagem, impecável nos demais aspectos. Em contrapartida, na tarde desse mesmo dia, fui agradavelmente surpreendido pela organização da Lebanon Mountain Trail. Sabendo do meu trabalho em reflorestamento pela Prefeitura do Rio de Janeiro quando da nossa apresentação inicial, o diretor da Horsh Ehden Nature Reserve preparou um plantio simbólico de mudas de cedro na área de recuperação florestal daquela unidade de conservação ambiental, quando passássemos por ali. Foi um momento muito tocante e de grande sensibilidade por parte dos nossos anfitriões, onde me senti extremamente honrado pela oportunidade de deixar meu tijolinho de contribuição no projeto governamental de reflorestamento do Líbano. Nessa noite retornamos para o Beit el Ward Boutique Hotel e comemoramos com um magnífico jantar.

No quinto dia começamos pela Horsh Ehden Nature Reserve, outra bela região de ambiente natural preservado, com maior biodiversidade de fauna e flora. Sua sede possui uma área apropriada para camping e uma boa fonte de água. Após deixarmos o setor de vegetação arbórea, subimos por um vale com antigos terraços agrícolas abandonados e adentramos em um trecho com intensificação da sinalização. Enquanto conjecturávamos sobre a necessidade do aparente excesso da marcação, casualmente entrou um forte nevoeiro úmido que reduziu a visibilidade. A resposta estava ali, naquele fenômeno climático, pois de uma sinalização podíamos ver a próxima, e assim conseguimos seguir até a dissipação da névoa. Mais abaixo encontramos um pastor com seu imenso rebanho de cabras e ovelhas, auxiliado por quatro cães. Laticínios provenientes do leite desses animais formam um dos pilares da alimentação dos libaneses, em especial o iogurte e a coalhada. O nome do país é derivado da palavra lubnan, que significa branco, podendo ser uma alusão à cor desses alimentos populares ou à neve característica das montanhas, depende da versão. Nosso guia falou que ele próprio era um pastor humilde quando foi recrutado pela Lebanon Mountain Trail para integrar seu quadro de credenciados, estando satisfeito com a nova atividade profissional (U$70 a diária). No final do dia chegamos em Bqaa Sefrine, cidade que se destaca pela quantidade de mesquitas, bem no momento de ouvirmos as suaves orações disseminadas simultaneamente pelos equipamentos eletrônicos instalados no altos dos minaretes. A região é uma das mais Islamistas no Líbano. Passamos nossa última noite na casa de uma simpática família muçulmana, que nos recebeu com um saboroso jantar. Em média, gastamos U$60 por dia na trilha, entre hospedagem e alimentação.

Após o tradicional café-da-manhã libanês, estávamos nos preparando para embarcar na van de volta a Beirute quando outra van estacionou ao lado. Dela desembarcaram crianças, préadolescentes, professores e uma guia credenciada pela Lebanon Mountain Trail, devidamente identificada pelo colete, para iniciar o trecho que tínhamos terminado no dia anterior. A curiosidade foi despertada em ambos os grupos e um incrível diálogo tomou forma. Em suma, esses jovens eram de uma escola e tinham feito um trabalho teórico sobre os problemas ambientais do seu entorno, expressando sua opinião através de desenhos e texto. Cada um mostrou orgulhosamente seu caderno com imagens de poluição dos rios, desmatamento, desaparecimento das abelhas e matança de pássaros. A trilha estava servindo como sala de aula prática para a discussão desses problemas in loco, um primoroso exemplo de educação ambiental com suporte da Lebanon Mountain Trail, ao disponibilizar sua guia. Uma alegre foto do grupo ficou como lembrança. A cereja do bolo para fechar nossa caminhada com chave-de-ouro!

A Lebanon Mountain Trail se propõe a interligar cidades e a proporcionar uma experiência gastronômica aos caminhantes. Sem dúvida que esses objetivos foram plenamente cumpridos. Pela primeira vez saio de uma travessia de longo curso mais pesado do que entrei, mesmo depois de transpor 93 km de trechos com alto grau de dificuldade. As classificações oficiais para esses trechos são difficult, very difficult e challenger, creio que devido à combinação entre distância, clima e traçado. A sinalização de apoio possui imperfeições, mas funciona bem e, aquilo que considerei exagero em alguns pontos, mostrou ter lógica em certas situações críticas. O traçado acompanha as variações geográficas do relevo de forma a se manter com inclinação razoável, buscando seguir curvas de nível e fundo de vales, onde permitido. Alguns trechos íngremes requerendo muito esforço físico deram o tempero diferenciado no trekking. Existe pouca disponibilidade de água e o calor é muito forte, associado ao clima seco. A trilha como um todo compartilha cerca de 40% do seu trajeto em lugares antrópicos com estradas vicinais e canais de irrigação, sendo o melhor possível a se fazer considerando a realidade de ocupação territorial do país, não tirando o prazer do caminhante em descobrir os seus atrativos naturais, culturais, paisagísticos e, sobretudo, humanos: quase todos os habitantes têm um parente ou amigo que mora no Brasil, motivo para farta distribuição de sorrisos e boa proza quando nos identificaram como brasileiros. A prestação dos serviços de apoio através dos credenciados funciona de forma honesta e eficaz, com boa qualidade no transporte, hospedagem, alimentação.

O Montanhismo evolui através de novas modalidades, existindo um significativo segmento de esportistas interessado em vivenciar uma experiência diferente em planejamento, logística, preparo físico e contato com ambientes naturais através das trilhas de longo curso. Mais do que caminhar, interagir com a população e os diversos agentes envolvidos no apoio, manejo, construção e governança dessas trilhas faz uma grande diferença no conhecimento, na percepção e na evolução do montanhista. Agradeço aos companheiros de trilha e ao competente staff da Lebanon Mountain Trail. Espero poder retribuir todo o carinho que tiveram conosco quando da vinda deles ao Brasil, prevista para maio/junho de 2019. Chegamos como estranhos e saímos como amigos! Aos temerosos com a minha viagem, meu reconhecimento com a preocupação, mas fui e voltei para contar! A todos, meu sincero shukran!

Plantação de maçãs ao lado da trilha, em Tannourine
Vista do Vale Qadisha, com as cidades de Hasroun (esquerda) e Bcharre (direita)
Jantar na pousada Tiger House, em Bcharre
Descendo para o Vale Qadisha
Chegando ao Monastério de Santo Antônio de Qozhaya, em Ehden
Sinalização na trilha
Antigos terraços agrícolas, com a Horsh Ehden Nature Florest ao fundo
Confraternização com estudantes em Bqaa Sefrine