Desde que alguns amigos do CERJ mostraram suas fotos da Travessia Lapinha x Tabuleiro em Minas Gerais, fiquei com grande vontade de fazer esta excursão. Recentemente, veio o convite do Xaxá aos Cerjenses. Imediatamente me inscrevi. A organização do evento, cuja logística não é tão simples como daqueles que acontecem nos arredores do Rio de Janeiro, envolveu a troca de muitas dezenas de e-mails, que serviram para aumentar a ansiedade da espera.

Minha excursão começou na sexta-feira, dia treze de julho, quando iniciei a arrumação do material para a viagem. O grupo dos cariocas que se uniria aos mineiros do CEM partiria em maioria neste mesmo dia à noite. Nos encontramos sem dificuldades na rodoviária e deixamos o Rio, pouco mais de vinte e três horas, com destino a Belo Horizonte, onde encontraríamos os mineiros e alguns cariocas que já estavam por lá. Apesar da viagem tranquila, meu sono não foi suficiente para restabelecer a energia necessária para uma caminhada como a que faríamos. Mas minha animação para encarar a empreitada era bastante para compensar qualquer deficiência física.

Mineiros e cariocas reunidos, seguimos em outro ônibus para Lapinha. O Xaxá revelou seu inquestionável perfil de guia logo de início. Durante toda a viagem ele nos apontava diversos pontos de interesse, o que criou um ambiente favorável à integração de todo o grupo.
A chagada a Lapinha merece destaque. Mas… Onde é Lapinha? Lapinha? Bem… Lapinha é em qualquer lugar ou em lugar nenhum. Um vilarejo perdido no mundo! Mas nesse quase nada rodeado de nada por todos os lados há um local muito especial: um bar.  Um local cuidadosamente decorado e imensamente acolhedor que reúne gente com jeito de que gosta muito de viver. Gente que ouve blues (mais precisamente, B.B.King e Eric Clapton) ao meio-dia. Certamente esses dois já se apresentaram para enormes públicos por todo o mundo, mas fico imaginando o prazer que eles sentiriam de tocar em Lapinha, ao meio-dia, para gente que gosta de viver. Outra questão de perspectiva…

Nos arrumamos ao som do blues e saímos. Não muito adiante, nos dividimos em dois grupos, que fariam trajetos diferentes para se encontrar ao final do dia. Mal começamos a caminhar e um fato sobressaiu na normalidade de nossa atividade até então. Nos deparamos com um pequeno córrego bastante lamacento. Sem se preocupar em ir mais à frente, o Xaxá estabeleceu a nossa abordagem para transpor o obstáculo. Jogaríamos as mochilas e, em seguida, saltaríamos um a um. Claramente, antevi a desgraça que nos rodeava. O próprio Xaxá foi o primeiro a se lançar com sucesso na margem oposta. Sem querer ser a primeira vítima, andei mais um pouco e vi que o córrego poderia ser atravessado com facilidade mais adiante.

Seguimos caminhando por um terreno completamente diferente de tudo o que eu já havia visto. A rocha esfarelenta nos oferecia um tapete de pedras soltas que se transformava em areia aqui e ali. Ganhamos altura até que uma imensidão se revelou à nossa frente: um visual indescritível de vegetação rasteira adornada em alguns pontos por pequenos bosques. Formações pontiagudas de pedra se enfileiravam quebrando a monotonia da paisagem.
A paisagem se estendia até onde a vista podia alcançar. Caminhei sozinha por longos períodos, o que aumentava ainda mais o contraste entre a minha figura e a amplidão da cena. Foi em um desses momentos que um pensamento me ocorreu e se tornou recorrente: “por que”? Por que estar ali em um belo sábado de sol e calor, caminhando com um enorme peso nas costas, em condições nada confortáveis para um ser humano? Apenas pelo visual? Pelo desafio? Pela companhia? Por que? Sem nenhuma resposta concreta, segui embevecida. Algum tempo depois, comecei a sentir dores em um de meus joelhos. Apreensiva, perguntei o quanto já tínhamos andado e percebi que havíamos cumprido apenas metade da meta de nosso primeiro dia. Sem demonstrar nada aos demais, continuei caminhando muito preocupada com os destinos de nossa pequena aventura. A possibilidade real de atrapalhar o passeio de todos me incomodava profundamente. A partir daí cada um de meus passos foi cuidadosamente planejado. O estado de alerta constante deve ter aumentado em muito o meu desgaste físico. Novamente pensei: “por que”? Perdi-me em meus pensamentos tentando vislumbrar razões para estar ali e meus devaneios chegaram a me fazer esquecer a dor durante alguns momentos.

Fizemos uma breve parada pouco antes do anoitecer, quando o Xaxá previu que ainda caminharíamos por mais uma hora e meia. Ainda sem revelar que estava com dor, continuei cada vez mais cuidadosa e, portanto, mais lenta. Já à noite, o Bodão percebeu algo anormal e perguntou: “Moniquinha, tranq”? A nossa intimidade de irmãos facilitou a minha confissão. Imediatamente ele tomou para si a minha mochila. Tentei resistir, mas ele foi determinado: “Moniquinha, se eu não carregar a sua mochila, vou ter que carregar você”. Diante do argumento imbatível, cedi. Ainda manifestei o meu desconforto com a situação, mas ele foi preciso: “Moniquinha, você tem um problema com o seu joelho e eu tenho um problema com a sua mochila. Cada um cuida de seu problema”.
Cabe aqui uma digressão. Quando ingressei no CERJ, julguei ter achado o que havia procurado sem sucesso no meio científico: um substrato perfeito da sociedade onde não existissem egos ou competição e onde tudo fosse motivado pelo bem comum. Aos poucos, fui descobrindo que somos todos irremediavelmente humanos e que, já que humanidade e perfeição são conceitos incompatíveis, eu não encontraria o meu oásis de harmonia. Mesmo assim, a janela de nossa atividade nos proporciona uma ótima perspectiva ao observarmos a nossa humanidade. Debruçados nessa janela, podemos ver com alguma frequência atitudes como a do meu querido Bodão. Mais uma vez, uma questão de perspectiva…

Voltando à nossa pequena saga, nosso objetivo naquele dia era chegar à casa de uma certa Dna. Maria. Latidos de cães cada vez mais próximos anunciavam a nossa vitória. Por volta das sete e meia da noite, ao avistarmos um casebre, o Xaxá perguntou à velhinha na janela se ela conhecia a Dna. Maria que morava naquelas redondezas. “Soieu”, respondeu ela. Como esperávamos que o grupo que se separara de nós no início da caminhada tivesse chegado à casa de Dna. Maria bem antes de nós, e como não vimos mais ninguém por ali, o Xaxá, descrente, formulou novamente a pergunta. “Soieu”, respondeu de novo a velhinha sem alterar a voz. Nosso guia ainda insistiu algumas vezes, sem acreditar no atraso dos demais. A velhinha seguiu respondendo “soieu” tão amistosamente quanto na primeira vez. A simplicidade e a pureza que emanavam da figura da velhinha confundiam um pouco os desconfiados habitantes da cidade. Após várias indagações, finalmente acreditamos estar no lugar certo.

Extenuados, sujos, famintos e preocupados com os membros do outro grupo, sentamos meio atônitos nos arredores do casebre. Mais uma vez, a pergunta “por que” recorria à minha mente. Aos poucos, fomos recuperando a razão, que havia cedido temporariamente ao cansaço, e começamos a tomar pé da situação. Lembramos que a comida, que seria dividida por todos os participantes da excursão, estava quase toda nas mochilas dos retardatários. Além disso, nos demos conta que a barraca que um dos nossos ocuparia estava também com alguém do outro grupo. Diante de todos os contratempos, a dor em meu joelho se tornara um problema desprezível. A simples mudança de perspectiva havia minimizado a importância de algo que estava me atormentado por um longo tempo…

Uma vez encarados os problemas, começamos a nos movimentar para resolvê-los. O Xaxá e a Iara nos lideraram. O primeiro tentava fazer contatos para descobrir o que havia acontecido aos demais, enquanto que a segunda providenciava comida, abrigo e banho para todos. A Iara foi a primeira a entrar no casebre e a conversar com Dna. Maria. Aos poucos, fomos todos nos chegando. Sem nenhuma cerimônia, nos ambientamos rapidamente. Uns ocupavam as camas disponíveis de um certo quarto, outros usavam um cômodo que se assemelhava a um banheiro, alguns se estabeleciam à volta do fogão a lenha para fazer o jantar, e a sala abrigava os que descansavam enquanto aguardavam notícias de nossos companheiros desaparecidos. A hospitalidade de Dna. Maria nos fazia sentir completamente à vontade. Algumas horas depois, já por volta de onze horas da noite, o outro grupo se uniu a nós. Estavam todos bem, apesar da exaustão. Eles haviam demorado pois uma pessoa passara mal logo no início da caminhada. Os atrasos provenientes desse fato somaram-se ao ritmo mais lento pelo cair da noite e a dificuldades para encontrar a trilha em alguns pontos. Mais comida no fogo, mais movimento no banheiro, mais gente circulando na casa de Dna. Maria… Assim nos preparávamos todos para o nosso segundo dia de aventura.

Eu desconfio que a simplicidade da velhinha não lhe tenha permitido perceber a importância que ela teve para nós naquela noite. Aquele casebre rústico e pobre no meio do nada, onde não havia nem eletricidade, se tornara o nosso QG. Ali articulamos todas as nossas ações. Dna. Maria não nos cedeu apenas a sua casa e a sua comida. Se pensarmos que tivemos livre acesso a tudo o que provavelmente ela tem na vida, percebemos melhor o valor das concessões daquela simpática figurinha. Enquanto algumas pessoas passam a vida preocupadas em deixar seu nome registrado na História, o despojamento de Dna. Maria jamais fará seu nome atravessar as fronteiras daquele nada nas proximidades de Tabuleiro. Entretanto, esse mesmo despojamento terá marcado para sempre a vida de mais de 20 pessoas. E ela nem se deu conta disso… Aqui, a perspectiva adequada revela a beleza dos atos de um ser humano.

Chegamos ao segundo dia. O clima era de muita harmonia. Tomamos café, nos arrumamos, brincamos um bocado, tiramos muitas fotos e partimos mirados pelos olhos úmidos de Dna. Maria. Meu joelho sucumbiu à minha alegria e à minha determinação de completar a excursão com minha mochila nas costas. Caminhamos até a Cachoeira de Tabuleiro. Ao chegar lá, me deparei com um cenário mágico. Um poço de beleza irresistível cuja água gelada apenas dava o toque de desafio necessário para que a sua conquista se tornasse ainda mais prazerosa. Sem pensar, cedi imediatamente aos seus encantos. Mas ele não era o único. A paisagem absolutamente sedutora me conduzia rio abaixo inebriada de prazer. A coisa toda parecia arquitetada. Os poços se sucediam um após outro em diferentes ambientes que misturavam vegetação, pedras, cachoeiras, luzes e sombras. À medida que eu descia, meu ritmo acelerava e a sensação de êxtase aumentava. Mas a natureza se revelou vaidosa e ciumenta. O preço do ápice era uma jura de amor eterno: um salto de mais de 300 metros para o último poço que se exibia lá embaixo. Apesar do enorme desejo que me tomava, resisti. Ainda o fitei por algum tempo, tentando levar comigo a sua imagem. Levei mais do que isso. Nas águas daquele poço não visitado, eu finalmente achara o meu “porque”. Mas era preciso partir. Sempre haverá novas paisagens a conhecer…

Nossa volta espelhou o sucesso da excursão. A alegria de todos vazava nos rostos, nas brincadeiras, nos discursos, nos aplausos e em todos os gestos. O mundo observado de dentro do ônibus que nos trouxe de volta da Travessia Lapinha x Tabuleiro ficou muito mais bonito. Que bela perspectiva!

Mônica Costa