A cordada – trilhas e montanhas.
Meu tio Armando teve dois sítios. Um deles por pouco tempo e nós o chamávamos de “Sitinho”, no pé da serra na subida entre o Rio de Janeiro e Petrópolis. Estive lá três ou quatro vezes em tempos anteriores à escola, ou já nas férias de algum verão. O outro foi o “Sítio Suzano”, e eu deveria escrever o seu nome com todas as letras maiúsculas. Com o mesmo nome ele fica até hoje logo depois de uma ponte de madeira por sobre o “Ribeirão de Itatiaia”, cujo nome real parece ser Rio Bonito. A ponte salta o ribeirão todo encachoeirado, levando a estrada que sai do caminho asfaltado ao Parque Nacional do Itatiaia, até na porteira do Sítio Suzano e, depois, das porteiras de outros sítios e chácaras da sua margem direita, a caminho de uma antiga pequena usina que em algum tempo terá iluminado as casas do lugarejo próximo.
Passamos ali dias breves de julho, e longos e inapagáveis dias entre dezembro e quase março, em um tempo em que as escolas eram generosas e sabiam que o melhor delas mesmas eram os dias de férias e de feriados. Em alguns anos íamos para lá no começo de dezembro e retornávamos, minhas irmãs, eu e um monte de primos e de primas, acompanhados de mães, pais, avós, tios e padrinhos, no final de fevereiro. Hoje em dia quando vejo a propaganda de “pacotes de férias” constantes de uma semana em algum lugar, me pergunto como as pessoas ainda conseguem ser felizes.
Da manhã à noite vivíamos dias de sol e calor na beira do ribeirão, saltando as suas pedras arredondadas ou mergulhando e nadando em suas águas verdes e límpidas. Subíamos morros, varávamos o que restava das matas de perto. E, sem as primas, os meninos se aventuravam vez ou outra pelas misteriosas florestas na beira do Parque Nacional. Conhecíamos quase todos os poços de banho do ribeirão, desde o “Poço do Julião” quase chegando à “Via Dutra” (e a uma até hoje pequena cidade um dia chamada Campo Belo e, hoje, Itatiaia), até o “Lago Azul”, que é verde, fica em pleno Parque Nacional e é a delícia de turistas que desembarcam dos ônibus vindos de perto e de longe.
Itatiaia foi por muitos anos o lugar do alargamento de minha convivência com o mundo natural. Lá sim, havia onças que eu nunca vi, e as florestas da Mata Atlântica subindo em direção aos altos campos de altitude do Planalto do Itatiaia poderiam abrigar várias vezes as minhas queridas matas da Gávea. Com as pessoas mais velhas do lugar completei aprendizados sobre os segredos da natureza, e de vez em quando trocava saberes com elas, procurando ensinar os meus segredos dos escoteiros. E procurando aprender o quase tudo que eu ainda não conhecia. Itatiaia por pouco não me fazia deixar de lado os sonhos adolescentes de vir a ser um “explorador na África” ou um desbravador geógrafo de caminhos misteriosos e desconhecidos em outros confins da Terra. Afinal, até hoje, mais de cinqüenta anos depois, quando passo por lá e vejo o mundo que vai dos campos de perto às florestas quase-virgens, subindo as paredes altas da Serra da Mantiqueira que acolhem em terras acima de dois mil metros as trilhas e montanhas do Planalto do Itatiaia, eu me pergunto se pelo menos aos olhos de meu coração haveria em todo o planeta um lugar mais belo e harmonioso.
Devo lembrar aqui que desde menino pequeno em Copacabana, sempre fui “bom de mergulho”. Do Arpoador aos rios que fui conhecendo e às piscinas que freqüentei, eu me adestrei cedo na arte de mergulhar de lugares altos e baixos, e de saber como entrar seguro e sereno em locais cheios de pedras e de perigos. Mas sempre há um dia. E num janeiro das férias de meu primeiro e último ano como aluno da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, ao dar um dos meus ágeis saltos em um poço recém-descoberto ribeirão acima, eu dei com a cabeça em uma pedra um palmo dentro das águas, e fraturei gravemente a coluna cervical. Foi um mergulho tolo e aparentemente sem perigo algum, até porque eu saltara de uma pedra a menos de um metro das águas. Mas, como vim a aprender mais tarde com os meus professores de escalada de montanhas: “a gente só despenca dos lugares fáceis”.
Fui levado às pressas ao Hospital da Aeronáutica, fui operado de imediato e passei longos dias de verão em uma cama e, depois, oito longos meses com um aparelho de gesso do baixo ventre ao alto da cabeça. Após uma lenta recuperação que me roubou um ano de estudos, fui submetido a um exame perante uma junta médica da aeronáutica. Fui dado como “incapaz para o serviço militar” e retornei de Barbacena – com menos sonhos de viver de voar – à doce vida civil da Rua Cedro. Isto foi em 1957, eu tinha dezessete anos e sabia que não seria mais piloto de guerra e nem mesmo comandante de navios, como dois primos e alguns tios. Melhor! Livre e civil eu subiria na vida de outro modo. E a escolha feita foi a mais feliz, pois ela me devolveu às alturas, às aventuras e, bem mais do que o breve ano de vida militar na aeronáutica, à natureza.
Uma transformação importante aconteceu ao mesmo tempo dentro de mim. E se eu não falar sobre ela agora tudo o mais perde a sua substância. Entre histórias de santos e de grandes heróis, e também entre as estórias de pessoas simples da vida de todos os dias, como eu, aqui e ali ouvia falar, ou mesmo lia narrativas incríveis sobre grandes mudanças de caminhos e destinos. De repente aconteceu comigo. Saí do acidente em Itatiaia, saí de meu colete branco de gesso, saí dos longos meses de convalescença, e saí da Escola Preparatória de Cadetes do Ar muito deferente de como acho que havia sido até mergulhar em busca de águas claras e bater com a cabeça em uma pedra dura.
Amoroso das árvores, dos bichos, das águas e das trilhas nos matos, de preferência subindo algum morro, eu me tornei mais ainda o que já era. Acho que muito pouca gente entre os anos cinquenta e sessenta caminhou tanto estradas e trilhas do Rio de Janeiro como eu. Eram longas manhãs pelas estradas da Gávea. Eram dias inteiros saindo de casa e indo a pé até “na Barra da Tijuca” (naqueles anos felizes, um quase deserto) ou até o alto do Corcovado, longos e longos quilômetros por uma estrada que até hoje tem este nome de poesia: “Dona Castorina”. Quem foi ela? Às vezes ia mais longe. Quando já escalava montanhas fui uma vez do Sítio Suzano ao Planalto do Itatiaia. Caminhei as trilhas altas do “Planalto” e desci “pelo lado de Minas” até na Via Dutra, durante três dias de que me lembro com detalhes de uma enorme saudade.
O mundo da natureza, bem mais do que o silêncio das igrejas ou dos lugares acadêmicos de aulas e de estudos, tornou-se para mim a melhor parte do “meu mundo”. Então eu quis ir além das trilhas do caminhar entre matos e monte. Tal como disse antes, segui os passos de meu pai e por alguns anos, entre o final de minha vida de colegial solteiro e o começo de minha vida de pós-universitário casado, resolvi aprender a escalar montanhas. Passei sustos e perigos, mas nunca me arrependi. Até hoje acho que este é um dos mais dignos e sagrados ofícios da espécie humana. De vez em quando penso também – para horror de meus amigos habitantes das planuras dos sertões do Norte de Minas e de Goiás – que no Paraíso tudo o que não sejam rios, riachos, cachoeiras e florestas como as da Gávea e as de Itatiaia, devem ser altas e infindas serras e montanhas
Durante um período de sua vida carioca de solteiro, meu pai havia se afiliado a um clube excursionista. Havia feito “trilhas”, como se diz agora, e havia escalado montanhas. Segui os seus passos em uma coisa e na outra. Logo no ano seguinte ingressei no mesmo Centro dos Excursionistas que o acolheu muitos anos antes. Depois de escoteiros da AEC São João Batista da Lagoa, foi neste “Centro” que eu me reiniciei na vida de excursões e de acampamentos. Fiz ainda em 1958 o “Curso de Guia Excursionista”, cujo certificado guardo até hoje como um documento precioso. Agora um “guia”, voltei aos meus matos e montes com redobrada vocação. Trilhei, excursionei e acampei pelo Rio de Janeiro e imediações. E viveria na beira de riachos, dentro de barracas, à sombra de árvores, em trilhas de florestas e no alto de montanhas todos os dias da vida, se pudesse. Não pude e não posso, até hoje. Mas o sonho de “viver no campo” me tomou pela vida inteira até hoje, até agora.
E foi em Itatiaia que escalei pela primeira vez. Otávio, um amigo e aluno da Escola Preparatória de Cadete do Exército conhecia bem os segredos das Agulhas Negras e foi ele quem me levou até lá em um janeiro de 1958. Ele em um cavalo eu em lombo de burro subimos os 20 km. Entre o Sítio Suzano e o Abrigo Macena, em pleno Planalto do Itatiaia. Escalamos em dois dias as Agulhas Negras e as Prateleiras. Herdei de Tio Armando fotos das duas montanhas e elas estão penduradas em quadros na parede o escritório na Rosa dos Ventos. Não tive medo e lá do alto das Agulhas Negras jurei que enquanto pudesse passaria o melhor dos meus dias de quase-piloto-de-guerra entre cordas de sisal (ainda não havia as de nylon, vindas depois da Suíça) e pedras de montanhas. Fui fiel ao meu voto pelo menos por mais seis anos.
Pouco depois, já no Clube Excursionista Rio de Janeiro cursei a Escola de Guias Escaladores. Um antigo atestado de haver escalado o Dedo de Deus, o de haver feito, muitos anos depois, o Caminho de Santiago e o meu diploma de Guia Escalador são os três únicos diplomas que pendurei na parede do escritório, junto com as fotos das duas montanhas.
Troquei fins-de-semana de dias de férias no Arpoador e nas praias de Leblon e Ipanema, por manhãs e tardes dependurado no Pão de Açúcar, na Pedra da Gávea, no Cantagalo, no Irmão Maior do Leblon e em outros picos da cidade ou de mais longe, entre Petrópolis, Itatiaia e Teresópolis. Outros companheiros de montanha, mais afoitos e bem melhores escaladores do que eu, aventuraram-se entre as pedras difíceis de picos do Espírito Santo. Raros os que escalaram nos Andes e, mais ainda, os que subiram algum alto pico nos Alpes. Se até hoje tenho inveja de alguém, é deles.
Andar entre trilhas em florestas, dormir dentro delas ou na orla e no alto de montanhas (como na gruta da “Orelha do Imperador”, nos altos da Pedra da Gávea) e, mais do que tudo, atar-me à cordada com um bando de poucos companheiros e viver horas de escalada, tudo isto foi estabelecendo entre o mundo natural e eu uma gratuita e generosa intimidade que me acompanha até hoje. Desde cedo não apenas aprendi com meu pai a “amar a natureza”, como é fácil dizer. Aos poucos fui aprendendo a conviver com os seres e cenários da natureza de uma maneira um pouco mais íntima. Um modo de interagir não apenas visual, mas sinestésico, quando possível. Sempre que posso meto-me nela, convivo com os seus elementos, me envolvo de suas águas e silêncios e me deito em suas terras e relvas.
Uma “virada” em minha vida foi o meu ingresso no Centro dos Excursionistas e depois no Clube Excursionista Rio de Janeiro, onde eu me tornei primeiro excursionista, depois guia excursionista, depois, escalador de montanhas e depois, guia escalador. Esse foi um período que me acompanhou de 1958 até por volta de 1964-65, quando eu então já estava estudando, primeiro Filosofia e depois Psicologia na saudosa e querida Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É preciso que eu abra um espaço bastante grande aqui, para falar da experiência do excursionismo e da escalada, do montanhismo, do alpinismo, como nós chamávamos naquele então. Isso porque a dimensão socializadora, a dimensão de vivência socializante, de interações iniciantes, de iniciação não apenas em técnicas da excursão, da escalada, mas em todo um conjunto de outras experiências de vida, tudo isso foi extremamente forte, em toda a minha vida, durante esses breves e inesquecíveis anos.
O Clube Excursionista Rio de Janeiro, na Rua Rio Branco, no centro da cidade tinha um pessoal miss jovem do que o Centro dos Excursionistas e abrigava uma quantidade razoável de jovens, rapazes e moças descendentes de alemães. Depois criei junto com amigos um clube excursionista de muito curta vida, o Clube Excursionista Pedra da Gávea, ligado à ASAGA – Associação dos Amigos da Gávea, que tinha sido recentemente fundado e tinha sua sede na vila, na pequenina vila de casas da PUC do Rio de Janeiro.
Creio que aprendi mais entre as pessoas do CERJ do que entre as da universidade. Entre excursões e escaladas vivia experiência do grupo da equipe sempre pequena, sempre um grupo, a maioria de homens, raras as moças, que tomava esse nome “cordada”, porque, nos tempos mais antigos, eu cheguei a pegar isso, nós íamos enlaçados numa mesma corda pela cintura, uns aos outros. Tomávamos uma corda, uma corda, naquele tempo, de sisal e cada um de nós, a partir do guia, fazia um pequeno círculo a volta da cintura, íamos então presos uns aos outros por uma corda, a uma distância, mais ou menos, dois, dois e meio, três metros uns dos outros. Uma mesma cordada nos unia, no mesmo destino de perigo, de risco, que era a escalada de montanha. A experiência dos clubes de excursão e escalada, foi marcante, porque, ali sim, ali tudo o que se vivia era criado por nós. Éramos pessoas, em geral, da mesma idade, e mesmo quando alguém era mais velho, a menos que fosse um guia muito experiente, um Ivo Pereira do Centro dos Excursionistas, na verdade, éramos uma gente igual, posta por igual, obedecíamos a um guia no que toca à segurança e a ordenação dos procedimentos, digamos, mais técnicos, mas por outro lado, éramos livres o bastante para improvisar comportamentos, para criar as nossas próprias iniciativas, seja da própria escalada, seja de outras situações, como por exemplo, o montar um acampamento, criar um espaço de onde ficar, numa pequena caverna, numa gruta, num lugar qualquer aonde chegássemos.
Uma das características mais marcantes de todo o tempo em que eu vivi, tanto a experiência da tropa, mas ali éramos meninos, quanto a cordada, da equipe de excursões, era a experiência da camaradagem, curiosa palavra, hoje tão pouco pronunciada, tão pouco dita e que entre nós era muito forte, veio a tomar mais tarde, como companheiro, um sentido mais político. Éramos uma gente que estava ali porque queria, sobretudo nos clubes excursionistas e de escalada de montanha. Fui porque quis, ninguém me levou, foi uma opção minha, uma adesão minha. Assim acontecia com todas e todos nós, éramos livres para entrar e sair, não havia sequer grandes rituais para uma coisa ou outra, como havia no caso dos escoteiros, sobretudo nos ingressos, nas chegadas e nos rituais de passagem. Nós nos sentíamos como pessoas que havíamos escolhido estar ali. Mais do que isso, muitas vezes nesses clubes havia várias excursões para o mesmo fim de semana, vários guias que iam a diferentes lugares, para escalar montanhas ou para fazer excursões, como sócios do clube, podíamos optar, escolher. Íamos duplamente livres porque ali estávamos, dentre as várias alternativas do que fazer num determinado momento, escolhíamos de novo a que nos parecia a mais interessante, a mais compatível com o momento de desejo e assim por diante, aquela onde estava os companheiros mais queridos.
Os cursos de guia eram duras experiências de aprendizado. Eu fiz um deles para me tornar “guia excursionista’ durante, praticamente um ano. foi no CE. Depois fiz um outro para me tornar “guia escalador”, ceio que dois anos depois, já por volta dos meus dezenove vinte anos. Foi já no CERF. E foi muito mais exigente. Eram cursos com professores capacitados, com aulas teóricas dadas na nossa sede à noite e com aulas práticas, seja no caso das excursões, seja no caso das escaladas. No caso das escaladas nós tínhamos, a mais das aulas de acampamento, de orientação na floresta, de nós, de segurança e assim por diante, inclusive, de primeiros socorros, tínhamos aulas técnicas de escalada. Elas eram feitas num lugar chamado “Campo Escola”, no Morro da Bica em Madureira, ou então nas montanhas, subíamos montanhas de dificuldade crescente e éramos então submetidos, já no final do curso, à prova de técnica de escalada, a provas teóricas, a provas de outros conhecimentos e depois a provas em escaladas de montanha. Fiz os dois cursos, fui o segundo colocado nos dois, se é que isso importa e são os únicos diplomas de que eu tenho um gosto especial, tenho inclusive esses diplomas pendurados na minha parede, lá na chácara.
Havia uma intenção de formar pessoas tecnicamente competentes, sobretudo no caso da escalada, onde há um dado de risco muito grande, em termos de uma ética de relações com o mundo natural e em termos de uma ética de camaradagem entre nós. Há pouco tempo atrás quando eu escrevi um pequeno artigo a respeito disso, pedido por Célia Serrano, eu dei a ele o título: “Eu fomos”, porque esse jogo de palavras, essa construção, de propósito, errada, ela queria traduzir justamente o espírito daquele tempo, o espírito da pequenina comunidade de escaladores. “Eu fomos”. Quase sempre, com raríssimas exceções, a escalada é praticada em grupos, as pessoas que escalavam sozinhas eram tidas por loucos, por arrojados temerários notáveis, mas não bons exemplos. Às vezes escalávamos em pares, eu mesmo já fiz isso, mas em geral escalávamos em pequenos grupos e com guia. Sempre no plural e o plural unido por uma corda, pregados uns aos outros. “Eu fomos”, um coletivo que se individualiza e um individual que se coletiviza. Estamos a tal ponto amarrados uns aos outros que respondemos uns pela vida dos outros. Dependemos uns dos outros, precisamos uns dos outros e todos precisam de cada um de nós. Esse era o espírito da cordada e isso nos era dito muitas vezes, inclusive, nas escaladas de montanha, é um guia que vai reconhecendo o caminho e subindo, é ele que pode ter uma queda maior, se por acaso dá um mau passo num lance de escalada.
Mas num grupo de cordada, de sete a oito pessoas, quando eu faço o meu lance arrojado para sair de um lugar e ir a outro, nós chamávamos a isso, fazer um lance, eu dependo do que fez antes de mim e que acima de mim, num lugar seguro, às vezes pendurado na montanha, onde havia um grampo fincado na pedra, nós fazíamos isso com muita frequência, ele me dava segurança, ou seja, ela ia recolhendo a corda à medida em que eu ia subindo, se por acaso eu escorregasse e caísse, eu ficava pendurado, ou despencava, dependendo da segurança, da qualidade de segurança que me era dada por essa pessoa. Dependíamo-nos uns dos outros, uma pessoa machucada era acudida por todos, preocupava todo o grupo, isso aconteceu inclusive na escalada do Paredão Morumbi, numa das provas finais da nossa escola de guia e que foi bastante dramática para mim, porque, por uma cãibra nos braços, eu quase despenco da parte mais alta, já na chegada da escalada e já quase à noite. Lembro-me de uma enorme tempestade logo depois e da minha enorme alegria por não ter despencado e nem morrido. Um pouco antes, horas antes, um colega nosso, Rudolf Kevin, uns dos meus amigos mais chegados, ele havia caído, estava justamente fora da cordada e por sorte não despencou e morreu, ficou preso numa árvore no meio da montanha, numa pequenina árvore que foi a sua salvação.
Nada como a experiência de estar “ali’, de ir a um lugar, de sair da casa, da escola, da cidade e habitar por um dia, por dois, por vários dias, um mundo próximo da natureza. Aprender ali, aprender não só dela própria, dos seus silêncios, das suas regras, da sua beleza, dos seus ditames, mas aprender, sobretudo, entre nós, do como devemos ser e proceder para, nesse lugar que não é a cidade, a casa protetora, ou a escola, vivermos bem e realizarmos aquilo que deve ser feito.
Tínhamos às vezes objetivos muito claros, às vezes apenas acampar, estar num lugar de montanha durante um período, mas num acampamento, na beira de uma praia, fruindo, vivendo momentos bonitos. Às vezes fazíamos disso um também aprendizado, íamos ali para aprender, para estarmos juntos fazendo alguma coisa, treinando, por exemplo, montagem de acampamentos, aprendendo algo mais sobre semáforos, sobre sobrevivência na floresta e assim por diante. Como no caso da escalada o objetivo era bastante mais claro. Íamos para realizar uma escalada, para chegarmos ao alto do Pão de Açúcar pela Chaminé Galloti, ou então para chegarmos ao alto do Dedo de Deus pelo Paredão Teixeira. Subirmos, irmos até lá, vivermos essa alegria única que é chegar a um cume de montanha. Mas todo o percurso, mesmo fora dos momentos da escola de guia, era de um também aprendizado.
Foi quando, já guia de escaladas, eu participei com alguns colegas do Clube dos Excursionistas Rio de Janeiro de conquistas de montanha. Isso que alguns colegas meus continuaram fazendo ao longo da vida, inclusive até adultos, eu vivi em poucos anos no Rio de Janeiro. Lembro-me de experiências frustradas. Uma vez, lá de Araras, ou Areal, já não me lembro bem, na casa de Laurita, justamente quando eu estava entre ainda fazer concurso vestibular para Engenharia Florestal em Viçosa e dar uma guinada e acabar fazendo, como eu fiz, vestibular para Filosofia na PUC do Rio, ainda lá, eu me lembro, eu estava num dezembro e de longe eu via uma montanha que parecia ter uma chaminé muito interessante, uma bela escalada. E nós fomos uma vez lá, nunca mais esqueci. O Valdemar, que nós chamávamos de Valdema, o Clarinete e eu. O Clarinete, um negro paraquedista, escalador de montanhas, os dois bem melhores escaladores do que eu, bem mais corajosos e, principalmente, o Clarinete, cujo o nome eu não lembro agora, chamávamos sempre assim, Clarinete, tinha uma enorme experiência, bem mais experimentado do que nós dois.
Fomos até lá, caminhamos longamente, dormimos uma noite a beira de um riacho e descobrimos que a chaminé era “inescalável”, ou melhor, não tinha graça nenhuma, era suja, como nós dizíamos, tinha muito mato e não se prestava a uma escalada técnica em pedra pura. Lembro-me que quando meninos lá na Gávea, nós da Rua Cedro, por muito tempo víamos no final da mata que subia de minha casa a pedra, que para mim uma mandala, um arquétipo até hoje, dos dois irmãos, o irmão menor e o irmão maior do Leblon e aspiramos muito um dia chegarmos a por as mãos lá. E uma vez nos organizamos numa pequena expedição e finalmente conseguimos, seguindo as trilhas da mata e nem por tanto tempo assim, chegar até o momento em que os dois irmãos, eles se encontram, se cruzam, isso nós tínhamos o quê? Onze, doze anos. Foi uma grande aventura e enquanto eu falo, as imagens dela, nós com mochilas improvisadas, com cantis, como se fôssemos viver algo muito grandioso e terrível, caminhando pelas matas, nos perdendo aqui e nos achando acolá, até chegarmos ao lugar que depois se tornou mais tarde trivial.
Anos mais tarde, quando eu já era excursionista, vivemos uma primeira pequena conquista ali. Mais uma vez Valdemar, se não me engano, Sérgio Bahia e outros, fomos até outra vez esse ponto de confluência, só que dessa vez já éramos escaladores e íamos com o propósito de desvendar o mistério: o que havia por cima dessa confluência, desse lugar de cartão postal, onde essas duas montanhas parecem estar coladas corpo a corpo. Chegamos ali de fato, havia um lugar possível dessa subida e não tão difícil assim. Subimos por ali, meio que escalando, meio que nos indo caminhando e conseguimos finalmente passar por uma pequena, mas maravilhosa brecha entre as duas montanhas, que nos facultou chegar, nem sei se fomos os primeiros a fazer isso, por um caminho novo, pelo menos desconhecido dos excursionistas e escaladores até um lugar de caminhada, onde atingimos o topo do Irmão Menor do Leblon. Chamamos a essa pequenina conquista Chaminé Ivo Pereira, homenagem a esse excursionista tão querido no nosso tempo.
Mais tarde, esse mesmo grupo, creio que acrescido de Moacir da Rua Cedro, nós projetamos uma descalada, ou seja, uma escalada às avessas. Fomos até um ponto do irmão menor do Leblon, inclusive aproveitando um reconhecimento que havíamos feito desta subida na Chaminé Ivo Pereira, encontramos uma passagem de paredão que nos pareceu promissora e em poucas horas descemos, utilizando uma técnica hoje em dia tão popularizada que é o rapel. Lembro-me que levamos uma corda de cem metros e de fato havia uma passagem no meio da montanha que nos obrigava a uma descida de uns noventa metros até chegarmos ao chão, já no Leblon, com grande alegria. Ficamos ali alguns grampos e descalamos. Soube mais tarde que esse mesmo paredão se transformou numa escalada, ou seja, naquilo que devem ser as andanças pelas montanhas, saídos chegam em chegar ao topo do monte.
Finalmente, alguns anos mais tarde ainda, eu animei um grupo de pessoas e nós fizemos a conquista do Paredão Baden Powell, na face de frente do irmão maior no Leblon, essa sim uma conquista de um verdadeiro paredão, de uma escalada que acabou sendo classificada como um quarto grau superior. Não me lembro exatamente a turma, tenho um catálogo de escaladas do Rio de Janeiro antigo, lá estamos todos nós. Lembro de Moacir, do Clarinete, do Cláudio, um notável escalador de montanhas, trapezista de circo amador e também paraquedista, vez por onde eu andava por essa época, não sei se Rudolf, que nós chamávamos de Cachorro, estava também no grupo e também não sei se Giuzeppe Pelegrini.
Foram aí, se não me engano, sete dias, ou nove dias, não seguidos, um atrás do outro, íamos em sábados e em domingos do Rio de Janeiro, lembro-me em épocas de verão e fazíamos alguns lances possíveis, retornávamos dali e continuamos até chegar ao topo da montanha. Fizemos depois, inclusive, uma grande escalada festiva, com pessoas que subiram pela encosta, pelo costão, caminhando e pessoas que fizeram conosco, essa que se tornou uma escalada clássica do Rio de Janeiro. Como eu não era dos melhores, dos mais corajosos, mesmo sendo o idealizador dessa conquista, fiz apenas alguns lances mais difíceis no começo da escalda, me lembro de um diedro e de uma pequena chaminé, as partes mais difíceis, algumas extremamente perigosas ficaram por conta de Clarinete, Valdemar e Cláudio.
A experiência da conquista de montanhas, pensada aqui como uma metáfora, como uma situação de aprendizado, ela se reveste de um valor que multiplica as experiências também tão importantes do estar juntos, criando algo, enfrentando, unir e chegar lá, atravessando o desconhecido, ou desconhecido, sendo ou não guiados por um alguém mais experimentado. Nas equipes que formamos, sobretudo no caso do paredão Badden Power, não tínhamos um guia, éramos todos guias, éramos uma equipe, resolvíamos ali, a cada momento, o que fazer, quem faria aquele lance, qual a estratégia, qual o caminho a seguir. Estávamos todos juntos, não mais em cordada, não era mais necessário, mas uns de alguma maneira atados aos outros. Não estávamos, como em outras situações, escalando uma montanha já conhecida, passando por lugares já desbravados, ao contrário, tínhamos a todo momento a sensação tão forte e nos falávamos tanto sobre isso, de que desde que o mundo se originou, desde que aquele lugar ali estava, certamente éramos os primeiros seres humanos a estarem subindo aquele lugar, passando por ali. Eis a conquista, eis o estar ali por uma primeira vez, decidir a cada instante que caminho tomar, qual o melhor rumo, por onde é mais seguro, ou então, por onde se cria o lance mais bonito, mais perigoso, mais técnico. Lembro-me de um momento da escalada em que eu dava a segurança, ou seja, segurava a corda e preso à cintura de Valdemar que fazia, usando cunhas de madeira, um diedro bastante difícil. De repente, por causa de um diedro mal colocado, ele despencou desse lugar, claro, ficou preso um pouco mais abaixo, mas de qualquer maneira levou um tombo de uns três ou quatro metros e chegou a se arranhar e machucar e a ficar bastante nervoso, ele um escalador muito jovem, mas muito experiente.
Mais de uma vez passamos perigos semelhantes e nos vimos o tempo todo responsáveis uns pelos outros. A cada instante éramos apenas nós ali naquele lugar, a cada momento decidíamos o que fazer, nos respondíamos uns pelos outros, tanto assim que, os lances de escalada conquistados por um de nós, individualmente, eram depois esquecidos, o que ficava como registro era a equipe que junta fez aquilo, chegou lá e conquistou aquela montanha. Lembro-me de momentos trabalhosos com as técnicas rudimentares de então, levávamos umas brocas de aço, uns macetes como que martelos dos pedreiros, dos calceteiros e levávamos grampos pesados feitos inclusive com vergalhões de obra de construção de casas e às vezes, em posições incômodas, em lugares perigosos, ficávamos uma, duas horas perfurando com essa broca de aço um ponto na montanha, onde fixávamos depois esses grampos. Imagino que se não apodreceram e nem foram retirados alguns deles estarão ainda por lá. Grampos que terão conquistas que houve, se não me engano, a quarenta anos atrás, eu penso em algo entre 60 e 61.
Muitas vezes depois eu li relatos, leio até hoje, vi filmes sobre conquistas de montanhas, claro, as grandes conquistas. Maurice Herzog e o Anapurna, a primeira montanha de mais de oito mil metros. Há pouco tempo atrás eu revi o documentário dessa escalada trágica, o próprio Herzog perdeu os dedos das mãos e dos pés, congelados. A conquista do Everest por Hilary e o guia Tenzing e depois várias outras grandes conquistas, no Himalaia, nos Andes, nos Alpes, mesmo aqui no Brasil, companheiros meus realizaram conquistas em montanhas bem mais perigosas, escaladas mais bonitas. E em cada uma delas eu me reconhecia, eu via a nossa pequenina equipe. É como se, pelo mundo afora, pessoas de vários povos, de várias línguas, irmanadas em equipes como a nossa, atrelados uns aos outros, uns nos outros, vivessem essa pequenina suprema aventura que é sair de um chão, caminhar pouco a pouco, com o corpo colado na pedra, tateando, passando por chaminés e paredões, fendas, lugares fáceis e difíceis, lugares simples e muito perigosos, até se chegar a um cume e dizer: eu vim aqui. Lembro-me de um inglês, se não me engano um inglês, ou terá sido um francês, quem sabe, que escalou uma montanha muito perigosa e quando perguntado por um repórter: por que que você fez isso? Por que que você subiu lá? Ele respondeu: “Por que ela estava lá”.
Nunca deixei de fazer as minhas muitas solitárias ou solidárias caminhadas por estradas e trilhas de perto ou de mais longe. Continuei a me reunir com grupos de amigas e amigos, para depois de uma longa trilha acamparmos por algumas horas ou duas noites. E até hoje a metáfora do bem e do belo ainda é para mim a de um grupo de pessoas caminhando em silêncio ou entre conversas, enquanto com um quase mesmo ritmo de passos trilham rumos entre campos e matos, em busca de um lugar desde onde não trazem na volta mais do que a alegria de haver “chegado ali”. E a felicidade da contemplação do que “aquele lugar” oferece aos olhos e ao coração de quem foi e chegou “lá”.
Duas vocações nos movem quando saímos e vamos. E ambas devem ter as suas raízes na gratuidade e na generosidade. A primeira: estarmos juntos pelo desejo puro e simples da convivência com um outro. A segunda: caminharmos juntos por um lugar de natureza sem um outro desejo além do caminhar e do chegar em algum lugar. Chegar para conviver e compartir, e então voltar momentos depois, sem trazer “dali” nada de coisas materiais e de proveitos contábeis. Quando hoje em dia penso no sentido da palavra “comunhão”, antes de a sua imagem ser mística ou religiosa, ela é essa: bem simples, bem terrena.
Mas a escalada de montanhas deu um certo outro sentidos às minhas imagens e memórias do “estar juntos” e do “chegar lá”. Em meus primeiros tempos de montanhista, em algumas vezes íamos ainda atados pela mesma corda, caminho de pedras acima. A equipe transforma-se então na “cordada”, pois este era o nome que dávamos à coluna de pessoas presas pela mesma corda e obrigadas aos quase mesmos gestos. Na equipe de trilha éramos mais livres, mesmo quando havia um guia e mesmo entre passagens de vez em quando bem perigosas. Caminhando todos em uma mesma direção e obrigados a um mesmo ritmo, cada um era, no entanto, senhor de seus passos e dono de seus gestos. Na cordada o que nos atava era bem mais do que uma corda de sisal.
Era o estarmos uns unidos aos outros de tal maneira que em cada gesto – a cada “lance”, como chamávamos o vencer cada passagem da escalada – cada um de nós dependia dos outros e todos os da cordada dependiam do desempenho pessoal de cada um. Um pequeno erro proposital de verbos e sujeitos bem traduzia isto. Ao dizer de vez em quando a outras pessoas o que nós havíamos feito na manhã de domingo, brincávamos de responder: “eu fomos escalar”. Pois mesmo quando se tratava de dizer o que “eu” fui fazer, quem “foi lá” era sempre um nós.
E então ir olhando e olhar “lá de cima”, pouco a pouco durante a subida e, depois, já no “pico”, todo o “mundo lá em baixo”. E, diferente de todos os outros, este era sempre um outro olhar. Ele carregava uma diversa qualidade de esforço e de desafio. Costumávamos dizer que a escalada era um dos raros esportes em que ninguém vence pessoa alguma a não ser ela mesma. Quando muitos anos mais tarde eu me vinculei aos jogos cooperativos, e em um dos seus cursos de especialização convivia com os participantes um módulo chamado: consciência da cooperação, com frequência usava lembranças e imagens das escaladas para traduzir ideias e imagens de solidariedade e partilha.
De fato, a chegada a um lugar natural mais alto do que os outros oferta ao olhar de quem chega um “espetáculo” único, mesmo quando existam tantos outros parecidos. Não é preciso que seja durante ou depois de uma perigosa escalada. Pois também se vive isto mesmo quando se sobe caminhando morro acima, como em excursões e trilhas de montes livres de pedras e abertos ao caminhar, (trilhas de “morro de vaca”, como costumávamos dizer então), a lenta ascensão e o alargamento contínuo de horizontes, acompanhada do crescente frescor do clima e, mais ainda, de uma certa aura de sagrado que o simples subir e escalar dá ao mundo em que se está e ao lugar até onde se chegou.
Um de meus antigos amigos, gostava de dizer, no alto de alguma montanhas, que “se Deus existe e vaga pela Terra, é aqui que ele mora!” Acho que nunca concordei inteiramente com ele, mas eu mesmo sinto até hoje uma solene presença de alguma coisa diferente, preciosa e quase sagrada quando subo com pessoas amigas a Pedra Branca, no Sul de Minas. Algo bem diverso do que experimento quando caminho pela praia entre “o final do Leblon” e o Arpoador, no Rio de Janeiro. Um dos grandes escaladores franceses de meu tempo disse uma vez que: “só aprende a ver de verdade as maravilhas do mundo quem correu o risco de perdê-las”. Outra frase talvez exagerada, mas que naquele tempo fazia entre nós um enorme sentido.
Nunca vivi êxtase algum em minhas meditações solitárias e acho que nunca vou alcançar Nirvana algum, pelo menos aqui e por agora. Mas acho que em algumas manhãs de maio ou tardes de julho terei chegado perto dele, sentado no cume de alguma montanha, tomando a água boa de um cantil e estendendo entre os silêncios dos companheiros, os olhos do corpo e os da alma a lonjuras de uma beleza infinita. Lonjuras, no entanto, feitas da matéria e da energia de um mundo real e palpável, aquele onde eu vivo. Um mundo de natureza que anos mais tarde algumas pessoas sábias e queridas segredaram a mim que poderia ser chamado também de “meio ambiente”.

Rosa dos Ventos
Carlos Rodrigues Brandão